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Festivais

47. Gramado (2019) – Bacuraru + O homem cordial

Dornelles: ‘Bacurau’ existe e eles são vários pelo Brasil / KMF: armas devem ficar nos museus

Por Luiz Joaquim | 17.08.2019 (sábado)

– na foto divulgação de Cleiton Thiele/Agência Pressphoto: Dornelles, Winston e Lesclaux (produtores), Sônia e Mendonça Filho.

GRAMADO (RS) – Nada como um festival de cinema que recebe também pessoas de fora do métier cinematográfico em seus debates para entendermos o real impacto de um novo filme que se apresenta. E no caso de Bacurau, de Juliano Dornelles e Kleber Mendonça Filho, cuja projeção abriu ontem (16) o 47o Festival de Cinema de Gramado, esse feedback do espectador foi revelador, como um termômetro mesmo, marcando a entrevista que houve com a equipe do filme, realizada na manhã de hoje (17) no hotel Serra Azul.

No caso, uma das falas mais marcantes da plateia veio de uma atriz que se identificou como Larissa e que, emocionada, contou só ter ouvido falar de Bacurau remetendo-se a um futuro, quando na verdade ela, após ver o filme, ficou pensando no nosso passado. “O Brasil não existia no mapa antes do ano de 1.500 mas, sim, existia. E toda uma diversidade indígena foi aniquilada por invasores. E a sequência final do filme mostra que mesmo com um passado de maldade estrangeira enterrado, ele ainda se mostra impregnando na nossa terra”.

Da mesa, Kleber Mendonça complementou revelando que tem olhado para Bacurau recentemente muito como um filme de guerra e menos de western: “Quando acabou a 2a Guerra [Mundial], havia uma catarse por parte das pessoas com a ideia de que o nazismo havia chegado ao fim. Ele havia sido enterrado. E quando ele começa a brotar como uma planta, algumas pessoas ficam apenas observando e dizendo: ‘olha, tá nascendo”.

A propósito de conflitos bélicos, Dornelles contou que a Guerra do Vietnã era uma referência para o contexto de invasão que o pequeno distrito de Bacurau sofre. “O filme tem sido muito referenciado à ideia de revanche. Mas acho que a palavra aqui é ‘resistência”; ao que Kleber comentou: “É importante que o filme estabeleça uma selvageria, mas não é algo que é celebrado pela comunidade de Bacurau”.

O filme dá algumas pistas disso quando, por exemplo, uma das personagens lava o museu da comunidade e pede a outra que seja mantido algumas marcas de violência na parede do museu. A razão? Para o que houve ali não seja esquecido. E diz isso lamentando.

Fica ainda mais latente, numa segunda revisão, o gigante cabedal de referências histórico-sócio-políticas que Bacurau nos entrega para deglutirmos. E no debate, além de destacado por um jornalista sobre o valor que é preciso dar a nossa própria história e as consequências disto [representando no enredo pelo Museu de Bacurau, como o CinemaEscrito já havia comentando em sua critica em maio último – leia aqui -], a escola no filme também foi referenciada como uma fortaleza de resistência.

“Na pesquisa de locação, visitamos dezenas de distritos nordestinos. Num deles, uma senhora me convidou para conhecer o museu da comunidade. Fui lá. Ela me levou para casa dela e o museu era uma parede, cheia de quadros, só isso. Nossa ideia para o museu de Bacurau já estava no roteiro antes desse encontro que só confirmou o que já sabemos, Bacurau existe e eles são vários pelo Brasil”, pontuou Dornelles, sendo aplaudido.

Já a jornalista Maria do Rosário Caetano apelidou o filme de “ONU brasileira”, em função de seu elenco diversificado pelos seus atores e unificado pelos seus personagens, por uma causa própria. Rosário pediu a Kleber para falar sobre as referências do cinema brasileiro em Bacurau, já citando algumas facilmente perceptíveis, como a Hora e a vez de Augusto Matraga (1965), de Roberto Santos.

Kleber contou que se aproximou mais do cinema brasileiro nos anos 1990, por questões pessoais, mas também pela histórica falta de preservação do cinema nacional, e sua consequência inacessibilidade. “De qualquer forma, não acho que as referências feitas pelo filme devam virar seu estandarte, e esse é um dos aspectos mais recorrentes nos debates”.

Foto: Cleiton Thiele / Agência Pressphoto

E ainda no início da coletiva, o próprio Kleber assumiu seu lado jornalista para perguntar a Sônia Braga: “Como Domingas [seu personagem em Bacurau] “bateu” após ela ter feito a Clara [de “Aquarius”]?

Sônia explicou que, como atriz, gosta de ser dirigida. E, por gostar de gente, é um tipo de atriz que não se encastela. Gosta da interação com a equipe. Daí ter construído sua Domingas pensando na vereadora Marielle Franco (1979-2018). E concluiu exigindo: “Eu quero saber quem matou Marielle Franco!”, para aplausos infinitos.

MAIS BACURAU – A dimensão de um filme, quem a dá é a história. E (re)ver Bacurau estimula a sensação de que aqui temos um obra que será debatida por décadas no contexto estético e político do cinema brasileiro.

Uma vez que a obra de Dornelles e Kleber é muito feliz sob vários vetores, ao suscitar provocações diversas, condenando aquilo que é contra a natureza do bem humano, suas dezenas de motes discursivos e estéticos irão sempre salientar-se conforme o modo, o tempo e o local de onde o espectador o aprecia.

Havia, de certo modo, uma expectativa particular sobre a recepção de Bacurau no Rio Grande do Sul, estado conhecidamente mais conservador e grossamente formado pela imigração de alemãs.

Uma sequência em particular no filme mostra forasteiros em Bacurau (personagens de Karine Teles e Antônio Saboia) que tentam explicar seu alinhamento com os malvados invasores da cidade: “Somos do Sul do País, é um outro contexto, estamos mais próximos [etnicamente] de voces”. O que a dupla recebem pela comparação que fazem é o escárnio de seus patrões estrangeiros. “Igual a nós?! Vocês estão mais para mexicanos brancos”.

Se quisermos utilizar tal contexto para o Brasil de 2019, já é eficiente o suficiente para espelhar o quão ingênuo (ou burro mesmo) são aqueles brasileiros que apostam na vaidade equivocada de um governo brasileiro que quer se igualar ideologicamente – e celebra – o atual governo norte-americano.

REVOLUÇOESBacurau também reforça um talento muito particular entre artistas de Pernambuco. Elemento ligado a capacidade de unir aspectos tão distintos quanto ricos entre a cultura local e mundial, para daí sair algo novo e encantador.

Se o manguebeat uniu a sonoridade do maracatu com o dub e o rock há quase 30 anos, transformando para sempre a música local de sua região, Bacurau parece repetir isto hoje, em sua versão cinematográfica. Um pouco o que O baile perfumado estabeleceu unindo as imagens dos verdes vales do Sertão ao som de Sangue de bairro, de Chico Sciense & Nação Zumbi.

Mas só “um pouco” porque ali, em 1996, o manguebeat já era reconhecido por si só como uma criação revolucionária, musicalmente falando. Em Bacurau o que há de novo são referências do cinema para com o próprio cinema.

E ela se configura em seu momento mais forte na cena da junção de um grupo de capoeiristas jogando ao som da mais vibrante melodia, saída da cabeça de John Carpenter e seus sintetizadores eletrônicos. Melodias que colaram historicamente em seus ultraviolentos filmes dos 1980s. Não dá para afirmar, no presente (temos de esperar o futuro dizer) se isso que vemos em Bacurau é algo revolucionário no cinema brasileiro, mas que há algo de muito forte nisso, há.

O HOMEM CORDIAL – Após a sessão de Bacurau, Gramado viu a projeção de seu primeiro longa-metragem nacional competitivo. Foi O homem cordial, de Iberê Camargo.

Iberê Carvalho apresenta seu filme – Foto: Cleiton Thiele / Agência Pressphoto

A propósito, uma breve sequência de Bacurau ajuda a entender o que parece ser uma das complicações na condução de O homem cordial. No filme pernambucano, Michael, personagem alemão vivido por Udo Kier, é xingado de nazista por um subordinado. Muito tranquilamente, Michael, em resposta, machuca seu opositor e pede para que preste atenção ao que dirá.

E diz: “Quando quiser descarregar sua raiva em alguém, não use clichês”. Ou seja, o problema não está em criticar, mas como saber criticar.

De certo modo, a crítica social contida contra a polícia em O homem cordial é uma crítica óbvia, quase sem nuances para entendermos porque a polícia comete os absurdos que sabemos cometer. Construir dramaticamente a polícia como o cão danado sobre a Terra (e isso é o que é quando o quesito é oprimir o negro e o pobre no Brasil) não basta para ajudar a enriquecer um pensamento sobre as causas desse problema, mas apenas o confirma. Ou, mais grave, o simplifica.

O caminho da condenação prévia, por exemplo, que sofre o roqueiro Aurélio (o ótimo Paulo Miklos) nas redes sociais por salvar um menino oprimido pela sua cor e condição social parecia ser o mais interessante e sedutor caminho que O homem cordial começa a traçar em seu enredo. Mas é um caminho que ganha diversos desvios ao longo do trajeto, deixando o espectador sem um norte.

* Viagem a convite do festival

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