Bacurau (Cahiers du Cinèma)
Celso Marconi traduz aos leitores do CinemaEscrito a crítica publicada pelo revista francesa para Bacurau
Por Celso Marconi | 13.10.2019 (domingo)
A revista francesa Cahiers du Cinèma sustentou o movimento nouvelle vague nos anos 1950 e 1960 do século 20 e hoje continua como a publicação mais importante no mundo sobre cinema. No número de setembro 2019 publicou várias matérias sobre o cinema brasileiro e com destaque para a produção pernambucana. Aqui apresentamos o trecho que abre o editorial da revista e fala em Bacurau e a crítica principal da edição sobre o filme.
Trecho do editorial – Cahiers du Cinéma – Business model
Por Stéphane Delorme
“A reentrada cinema é iluminada por Bacurau de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, fábula e modelo explosivo contra forças de destruição massivas. No momento em que o cinema brasileiro é um dos mais férteis (Gabriel et la montagne, Aquarius, Les Bonnes Manières) ele se encontra ameaçado pela ofensiva reacionária e retrógrada de Bolsonaro… Nossa enquete com alguns cineastas revelou mais inquietude do que energia para reagir…”
A CRÍTICA
Vila global
Por Camille Bui
A gente se lembra de Sônia Braga, ao fim de Aquarius , colocando um ninho de cupim no bureaux do empresário imobiliário mafioso que tentou mudar sua opinião pelos piores meios. Último gesto de resistência do personagem era também o do filme que, em certa ocasião, se aproximou de um registro mais próximo do cinema de gênero que do retrato de mulher que ele havia desenvolvido até então. Já no Som ao redor, antropologia urbana reencontrou a angústia do ‘thriller’. E é este nó fecundo através do qual se entrelaça sátira política e ficção popular que Kleber Mendonça Filho continua apresentando seu terceiro longa-metragem , Bacurau, co-dirigido com Juliano Dornelles, diretor artístico de seus filmes anteriores.
Seguindo a ideologia da conquista do Oeste, Bacurau reorienta a energia vingativa e agradável do western tomando por alvo a América do capitalismo devorador e do fascismo rastejante. Dois relatos no mundo se chocam na guerra entre os habitantes de Bacurau, uma pequena vila no interior do Nordeste do Brasil, e seus inimigos, a princípio invisíveis, que são esses americanos loucos no espaço. Por um lado, os habitantes de Bacurau se misturam com a paisagem vegetal e mineral. O visual é para eles à altura do homem – e mulheres para abraçar o ambiente cotidiano a partir das ações e gestos de cada um, em uma circulação fluida: da escola para a sala, da rua para o supermercado, da entrada da vila para a praça comum. O território de Bacurau é visto como um bem público, uma ameaça de desaparecimento pela loucura privada de políticos corruptos e paramilitares americanos. A relação dos estrangeiros com essa terra, mesmo que sejam ridículos prefeitos da região, Norte-Americanos ou Brasileiros do Sudeste, é, pelo contrário, marcada pela predação, distância geográfica, afetiva, cultural, ótica, que se reduz a um ato de destruição, que seja direto – por bala – ou indireto – por utilização de recursos vitais e, em particular, a água. Encarnação paroxística deste sadismo cartográfico: retirada da vila do mapa cartográfico da região, descoberto pelo mestre da escola incrédulo, e sua classe durante uma lição de geografia e mais ainda, as vistas aéreas tomadas pelo drone distópico, que sobrevoa Bacurau e deixa ver os humanos do alto, como um simples jogador a abater.
Para Mendonça Filho e Dornelles o sertão é então longe de ser um décor folclórico para a ação dos seus protagonistas: eles pretendem, com um mesmo gesto, a dar destaque à geografia e à sociabilidade. Nos dois regimes espaciais – habitar ou conquistar – correspondendo aí as maneiras de criar grupos em si antagônicos. Os planos sobre o cortejo funerário de Carmelita, a matriarca negra, dá a reconhecer com força, desde a abertura do filme, a comunidade de Bacurau como um todo unido. Um todo unido num mesmo quadro, ouvindo nos sons da mesma canção, mas que foram compostos com o heterogêneo: de corpos, de rostos, de cores de peles, de idades, de gêneros. Sempre ao longo do filme e até a reluzente sequência final, de impressionante plano de conjunto vem reafirmar a existência insistente deste coletivo, que se revela progressivamente como a verdadeira personagem de Bacurau: sorte de entidade múltipla no seio da qual o ponto de vista do filme se movimenta, de um indivíduo ou de um pequeno grupo a um outro. Se nós estivermos então ao lado de Teresa, vindo de Recife para enterrar a sua avó, rapidamente, o foco se multiplica por nós saindo dos outros habitantes, de Plínio, o professor da vila, a Lunga, esse bandido que sairá da clandestinidade para organizar a resistência armada.
Em torno desse pequeno círculo solidário, o grupo dos Estados-união se constitui então mais fortemente como um puro agregado de circunstância e de interesses: cada um terá seu momento de ‘caça’ e traçará sua própria rota mortífera. Uma sequência seguida visualmente de maneira angustiante a confrontação entre as duas maneiras de ser no mundo. Uma luminosa, unida e aberta para fora: a outra, solitária, deletável, seguindo na obscuridade. As crianças de Bacurau jogam para fazer medo escondidos no escuro que encobre a vila na noite caída, uma tocha nas mãos. A montagem alterna então entre o campo de visão das crianças que avançam na obscuridade e o contracampo, um olhar escondido no escuro pelo qual as mesmas crianças são então pontos luminosos e silhuetas se decupando sobre o fundo da luz calorosa da vila. Este reencontro entre a luz e a obscuridade se torna horror quando a sombra engole uma das crianças abatida por um sniper, e que o medo verdadeiro se substitui ao ‘faz de conta’ do jogo infantil.
Mas uma das possibilidades que a mise en scène tem na sua capacidade de construir com grande naturalidade uma metáfora política do Brasil atual, com sua força luminosa e obscura, mesmo sem fugir ao risco – narrativa e ideológico – do excedente significativo e do simplismo binário. Isto tem a ver com a maneira como os cineastas ajustam aos personagens de dois campos uma mesma espessura, uma larga nuance de encarnação com atores especialmente carismáticos: do lado de Bacurau Sônia Braga como médica, figura destacada da vila, sábia na sua loucura; do outro Udo Kier em grande forma mercenária orquestrador de olhar cintilante. Uma vez aberto esse olhar alternativo no grupo inimigo, o filme não abandonará jamais os ‘mercenários’ à uma essencialidade abstrata, deixando a nós ver por um momento no olhar insustentável dos exterminadores. Mas essas incursões do lado do inimigo não revelam jamais em Bacurau nem um julgamento obsceno nem uma explicação política duvidosa: eles não fazem senão reforçar a fuga inquietante da incompreensibilidade e ativar nossa empatia pela resistência necessária. Por essa representação do mal, as vezes concreta, outras humana, e inexplicada, outras com o ar inumano, o filme ultrapassa a simples denúncia analítica de um estado do mundo, para fazer ressaltar com frisson a profunda confusão da ameaça fascista que eclode depois de alguns anos.
Face ao horror se a comunidade rural de Bacurau é tão bela é que ela não tem nada de fantasma resistente, e que ela parece mais participar de uma versão alternativa do presente ou de uma utopia possível. Porque, de um lado, o filme faz numerosas referências à cultura popular nordestina, seguindo até aparecer o personagem mítico do cangaceiro, o bandido do sertão, que se coloca com mão-forte à resistência de Bacurau, ou faz encarnar a mais velha da vila a Lia de Itamaracá, figura maior da música popular de Pernambuco, já presente no curta-metragem Recife frio de Mendonça Filho. Mas também não se trata jamais da parte do cineasta de jogar sobre o registro de uma identidade conservadora ou do mito da ‘democracia racial’ brasileira. À imagem da heterogeneidade ética e cultural da vila, o filme trabalha para colocar em movimento símbolos tradicionais, já afiliados à lutas de resistência, juntando-os com outras formas, outros pensamentos, vindos claramente do ‘thriller’ ou do horror sanguinário, da crítica feminista e pós-colonial, ainda da ficção-científica e de suas invenções tecnológicas. Na banda sonora de Bacurau esta temporalidade portadora de um passado popular de certa forma avançando sobre o presente fazendo possível o reencontro de Caetano Veloso e de John Carpenter com a música dos irmãos Mateus Alves e Tomaz Alves Souza, que cruzam eles mesmos os ritmos brasileiros e os sons eletrônicos.
É então pela sua audácia estética e menos pela construção da obra que Bacurau dá forma a um ideal que se ergue de maneira agressiva contra a ideologia dos tempos de Bolsonaro ou de Trump: o ideal democrático de uma sociedade em movimento, construída por múltiplos e se alimentando por uma história de resistência política e cultural – afro-brasileiro, mulheres, camponeses, povos indígenas – mais que herdeiros de conquistas violentas, do fascismo e do patriarcado. Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles assinam assim com Bacurau uma grande ficção política na qual a vitalidade a toda prova é uma virtude necessária para enfrentar a monstruosidade bem real da extrema direita contemporânea.
(tradução Celso Marconi, em 10 de outubro de 2019. Olinda)
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