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Críticas

O Irlandês

Sobre lealdade. Sobre envelhecer.

Por Felipe Berardo | 29.02.2020 (sábado)

Mais relevante que as dez indicações ao Oscar exibido para o mundo há pouco mais de uma semana, pelas quais não recebeu nenhum prêmio, O irlandês (The irishman, EUA, 2019) será mais lembrado como uma das obras finais de Martin Scorsese, um dos mais importantes e influentes cineastas vivos atuantes no mundo. Finalidade essa não necessariamente literal, visto que continua produzindo, atualmente atrelado como diretor para projetos de dois filmes e uma série de TV, mas parece ser alcançado aqui o final de uma série espiritual de seus filmes de gângster com Os bons companheiros e Cassino, podendo-se incluir O lobo de Wall Street também. Algo possibilitado por essas décadas de história e signos construídos pelo cineasta através desses filmes. 

A diferença, no entanto, está no interesse de como representar a máfia aqui não como parte de gerações jovens e desreguladas na busca por sucesso em um sistema que favorece suas condutas imorais e falham em trazer consequências significativas para esses. Scorsese parece mais interessado em assumir a introspecção permitida pela reflexão de fim de vida do protagonista, Frank Sheeran (Robert DeNiro), para debruçar-se sobre as formas que a organização da máfia influenciou na história política e social dos Estados Unidos. 

Ao mesmo tempo, o diretor cria um centro emocional para o filme partindo da completa falta de emoção que envolve a vida do personagem principal, evidenciando a forma tóxica com que o profissionalismo e o pragmatismo absoluto são aplicados às relações pessoais em instituições essenciais à identidade americana como a já citada máfia e o exército. Esse último representado pelo passado militar de Frank em que já exercia sua falta de humanidade e empatia ao matar soldados inimigos capturados sem preocupações ao receber ordens.

Essa mentalidade do personagem principal mostra-se apropriada para o crescimento nesses ambientes. Através do seu respeito e admiração a esses valores vigentes de cordialidade e amizades artificiais propostas dentro de estruturas hierarquizadas de poder ganha cada vez mais importância e influência. Frank Sheeran (Robert De Niro), através de sua incapacidade de exercer sentimentos, é o modelo ideal para essa realidade com visitas familiares superficialmente carinhosas, que servem mais como gesto falso para construção de uma suposta intimidade entre patrão e subordinado. 

Pela longa duração de 210 minutos do filme, então, a jornada que seguimos é a de um homem tão separado de seus próprios sentimentos que vive sua própria vida como profissional a frente de tudo, sempre como uma engrenagem funcionando para uma máquina maior, sem qualquer espaço para uma busca pessoal por qualquer tipo de autonomia ou emancipação. A maior ferramenta do filme para transmitir essa mensagem está na ligação direta entre as atividades do protagonista e alguns dos maiores acontecimentos históricos e políticos nos EUA nos anos 1960, ainda que o personagem negue qualquer nível de consciência ou interesse em entender a ramificação de seus atos de violência, ligados à eleição e ao assassinato de John F. Kennedy, à tentativa de golpe da CIA em Cuba e à influência e ao eventual assassinato de Jimmy Hoffa (Al Pacino).

Esse último acontecimento serve como ponto principal de conflito da segunda metade do filme e como ápice da distância emocional proporcionada pela sociopatia de Frank. Vemos um homem destruir com as próprias mãos o que deveria mais importar para ele, matar o único relacionamento verdadeiro que possuiu em toda sua vida e pôde sinceramente dividir com sua família, especialmente com sua filha Peggy, porque esse era seu trabalho e suas ordens. É excruciante assistir a mais significativa decisão da vida de Frank tanto para ele quanto para aqueles ao seu redor ser tratada como apenas um dia de trabalho mais difícil que o comum, com viagens longas e algumas relutâncias no meio do caminho.

 Após essa sequência, os últimos 45 minutos do filme acompanham o personagem principal e alguns outros indivíduos que por nada mais que acaso conseguiram chegar à terceira idade. São retratados os seus anos na prisão, a decadência de seus corpos cada vez mais velhos e os relacionamentos erodidos pelas décadas de completa negligência ou violência desmedida e, ainda assim, descrevê-los como fatalistas não parece correto. Isso porque, mesmo ao fim de sua vida, o protagonista não carrega traumas ou arrependimentos de suas ações, tenta reatar com suas filhas sem entender o mal que as fez e nega esclarecimento às famílias das pessoas que assassinou, mesmo sem promessas de punição, em nome de uma lealdade a cadáveres e a princípios mortos que têm nesse septuagenário seu último guardião. 

Frank Sheeran nunca percebe ou se assume como a figura trágica em que transformou sua própria existência. Caminha para a morte como viveu toda sua vida, apoiando-se em valores sistêmicos com os quais sente-se confortável, colocando-os acima de suas próprias emoções e de qualquer empatia ou consideração pelas emoções de outras pessoas, mesmo quando esses mesmos valores tornam-se caducos e irrelevantes. É de fato a personificação perfeita da figura do herói americano.

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