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Festivais

48 Gramado (2020) – El Silencio del Cazador

Western rural argentino caminha entre convenções de gênero e consciência política e econômica.

Por Felipe Berardo | 19.09.2020 (sábado)

Fechou a primeira noite de programação da 48ª edição do Festival de Cinema de Gramado como parte da mostra competitiva de longas estrangeiros, El silencio del cazador (Argentina, 2019), o quinto longa-metragem realizado pelo diretor argentino Martin Desalvo. Essa experiência do cineasta é refletida aqui na segurança e competência com que é trabalhada a lógica da mistura entre cinema de gênero e críticas políticas regionais propostas pelo roteiro de Francisco Kosterlitz. Algumas questões dramáticas clássicas como triângulos amorosos e códigos de cinema de gênero ligados ao western – a masculinidade destrutiva, por exemplo, funciona como motriz principal da trama – são trabalhados em um pano de fundo político que trata tanto do conflito de interesses entre a preservação ambiental e o capital latifundiário quanto da marginalização econômica vivida pela população indígena local.

A narrativa que serve de apoio textual para esses elementos trata do guarda florestal, Ismael Guzmán (Pablo Echarri), e seu conflito constante com o dono de terras, Orlando Venneck (Alberto Ammann), pela insistência desse último em caçar num parque de preservação florestal, aparentemente como forma de reviver memórias afetivas da sua infância com o pai agora doente, relembrar os tempos em que seu privilégio era ainda mais absoluto e desregulado. Cada vez mais, no entanto, fica óbvio que os problemas entre os dois homens não são apenas políticos ou criados pelas suas posições opostas naquela comunidade. Ambos compartilham uma história próxima desde a infância, sendo o pai de Ismael funcionário do pai de Venneck, até a vida adulta com a esposa do protagonista, Sara (Mora Recalde), também já tendo um relacionamento com Orlando.

Cena de “El Silencio del cazador”, com o ator Alberto Ammann

Esses conflitos pessoais e românticos advindos da história pessoal dos personagens são o foco do longa e, ainda que competentes, são mais convencionais e menos potentes que os elementos criados a partir das especificidades da região e de suas consequentes consciência econômica e social que são universalmente relevantes, ainda que muito próprias. O longa, então, acaba soando bem intencionado, mas um tanto confuso como se preso no interesse entre esses dois pontos diferentes de uma lógica mais narrativa convencional e uma mais politicamente ativa e relevante.

Essa confusão entre duas filosofias diferentes também parece poder ser vista em algum nível formal com a fotografia de Nicolas Trovato, em seu segundo trabalho com o diretor. É utilizada pela duração de 103 minutos do filme muitos planos longos sem cortes, gravados com a câmera na mão sem muita estabilização, algo que possibilita uma espontaneidade valiosa, especialmente nos momentos na floresta e em cenários construídos com muitas pessoas e elementos em que a câmera parece se mover com liberdade quase sem preocupar-se com a possibilidade de equipe ou elementos não desejados aparecerem em tela.

Os planos-sequência aqui favorecem esses momentos espontâneos e que fortalecem a diegese de cenas, no entanto, ainda há diversas partes em que os movimentos de cena e as performances dos atores parecem ser dirigidas de forma bastante calculadas, de forma a mantê-los sempre dentro de um roteiro de ações. Ainda assim, há definitivamente situações instigantes pela decisão estética dos longos planos como a primeira cena na casa da família dos Venneck em que vemos a mobília e armas decorativas em toda a casa de forma muito natural ou uma cena de sexo em que nos aproximamos e separamos dos personagens entre movimentos com uma clareza e conforto mais singular do que o comumente visto.

Ao fim, as partes mais fortes e com resoluções mais significativas são as associadas a questões políticas como a empregada indígena que retoma como reparação os pertences no cofre de família preenchido com a exploração de seu povo e destruição de sua terra ou o fato de que o luto de Sara se estende a seus companheiros de classe rica com quem cresceu acima das pessoas com quem convive diariamente sem o mesmo poder econômico.

A jornada de autodestruição mútua dos dois personagens através das armadilhas de suas personalidades e o clímax acaba sendo comparativamente óbvio e desinteressante, se não por uma possível complicação no arco do personagem principal. Parece que ao tornar seu arco para um viés individualista favorecendo seu emocional, ignorando suas razões ideológicas e políticas acaba garantindo um final trágico para si, espelhando o de Orlando, com seu fim representado pelo exato símbolo que prometia proteger naquela floresta, uma ironia que pode ou não ter sido pensada em meio às jornadas tradicionais propostas pelo roteiro, mas que ainda soa expressiva e importante.

Leia também sobre o longa-metragem brasileiro, Por que você não chora? e sobre os curtas-metragens exibidos na noite de ontem (18). Clique aqui.

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