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Críticas

O oficial e o espião

Quando o extrafílmico é o fílmico

Por Ivonete Pinto | 20.03.2020 (sexta-feira)

Há os que acham por bem ficarem surdos diante das acusações que Roman Polanski sofre e optarem por analisar somente a obra, ignorando seu contexto extrafílmico; há os que entendem que no caso de O oficial e o espião (J’accuse, Fra./Ita., 2019) esta postura não se sustenta. O texto a seguir fica neste segundo grupo. Não se sustenta porque Polanski, ele próprio,  propõe a conexão autor-obra quando busca um episódio da história para inocentá-lo, para dizer-se perseguido injustamente como Dreyfus. Ao final das contas,  não se trata de um campo extrafílmico: Polanski é Dreyfus.  O diretor polonês é judeu como Dreyfus, esteve confinado num campo de concentração quando criança, sendo esta sua dimensão como vítima absolutamente irrefutável. Muito por conta de sua sensibilidade para com o tema, Polanski nos deu uma das melhores obras sobre o holocausto, O pianista (Oscar de Melhor Filme em 2002), embora é preciso dizer que nem todos seus filmes têm a mesma qualidade. Dirigiu produções bem problemáticas, sofríveis até, como Lua de fel (1992).

Ao escolher um enredo centrado no caso Dreyfus como um dos seus últimos filmes  ─ aos 86 anos não está exatamente no início ou no meio da carreira ─, Polanski sugere que o público e a crítica  o vejam como Alfred Dreyfus. O capitão de artilharia, vivido com sobriedade por Louis Garrel,  é  acusado de espionagem, em um julgamento denunciado como de puro antissemitismo (se ainda não leu, aproveite o coronavírus para ler a obra prima J’accuse!, de Émile Zola). No entanto, como sempre admitiu a culpa de ter drogado uma criança de 13 anos, em 1977 nos Estados Unidos, quando tinha  43 anos,  não era propriamente um inocente. E temendo  receber uma pena demasiada,  antes de receber a sentença fugiu para a França. A França é sua  irônica Ilha do Diabo.

Se nos ativermos a uma análise estética, O oficial e o espião muito pouco contribuiria para a elevação da arte. Estrutura acadêmica, no sentido de um padrão narrativo clássico, e encenação ordinária. Uma decepção se considerarmos seu primeiro filme, A faca na água (1962),  um suspense que  indicava o domínio do diretor na linguagem do cinema, e, claro, os estupendos filmes de horror A dança dos vampiros (1967) e O bebê de Rosemary (1968). Produções  que não envelheceram, que servem de exemplo de como é possível lançar mão do cinema de gênero com inventividade. Há outros títulos memoráveis em sua longa carreira, o que torna ainda mais justificável a atenção que recebe a cada novo trabalho.

Dar atenção não implica em ignorar seu crime. Se houve mau comportamento do juiz nos Estados Unidos à época, se o julgamento fosse transformado em espetáculo, é outra questão. O fato é que Polanski admitiu o crime e deveria ser julgado. A reflexão é necessária, pois está em jogo algo mais complexo do que um crime. Ou melhor, um crime mais complexo do que uma conduta ilegal. Graças ao feminismo, e passadas todas estas décadas, hoje mulheres e homens têm mais consciência do que representa abuso, pedofilia, estupro. O feminismo não é um movimento passageiro, é uma visão de mundo, e nesta visão o episódio indefensável de usar o corpo de mulheres, com o agravante de se tratar de pedofilia, adquire uma dimensão maior. É preciso, estrategicamente, usar destes momentos históricos ─ e o lançamento deste filme é um momento histórico relevante para o processo de conscientização quanto à igualdade ─ para discutir, afinal, por que a sociedade cria  graus de importância e punibilidade quando se trata de violência de gênero.

Se ficarmos  no universo de Polanski,  o antissemitismo é rechaçado  nos domínios de qualquer intelectualidade racional, progressista, humanista, etc. Em seu nome foram perpetrados crimes hediondos. Tirando a extrema direita que volta a sair dos bueiros do mundo com o ódio aos judeus, estamos todos de acordo quanto à inadmissibilidade desta conduta. Então, Polanski tem a seu favor uma luta em comum. Ao escolher este tema, ele cria uma barreira de proteção: não me ataquem, pois ao me atacarem, vocês estão sendo antissemitas.

Ocorre que na visão de mundo da ideologia feminista, não é passível de compreensão (e perdão) alguém que, por pertencer a um grupo étnico-religioso e ser perseguido por isto, achar que praticar crimes contra mulheres e não ser julgado é ok.

E se insistimos aqui no peso da natureza extrafílmica de O oficial e o espião,  é também porque  Polanski fez questão de “tocar no assunto”  no roteiro que  assina com o autor da novela original, Robert Harris. Pauline Monnier, amante do coronel Georges Picquart (o sempre irretocável Jean Dujardin), é sua mensagem às mulheres. Emmanuelle Seigner, esposa do diretor, ao viver a personagem coadjuvante na história,   diz muito desta mensagem. Como mulher de seu tempo, Pauline casou com o primeiro que lhe pediu em casamento. Este é o contexto  do século 19, bem verossímil. Mas para mostrar a força e a independência das mulheres (de hoje), o enredo a coloca tendo um caso extraconjugal e, mais importante (spoiler), no desfecho de seu subplot ela, já separada, é pedida em casamento pelo coronel Picquart e não aceita. Prefere seguir numa relação amorosa fora dos padrões. Pode não ser verossímil para aquele tempo, mas é a piscadela de Polanski para as mulheres. Há  outros filmes dele com mulheres protagonistas  fortes, portanto, não se trata de algo novo em sua filmografia. Porém esta personagem em específico, neste filme, neste momento #MeToo, precisa ser lida de forma diferente. Ela é o extrafílmico se esgueirando para ter relevo na trama e contribuir para o discurso de Polanski a seu favor. Ele não voltou para os Estados Unidos para ser julgado, mas monta na tela sua defesa extratribunal. Paradoxalmente, afirma que é inocente, contrariando a sua admissão de culpa quanto ao caso em solo americano que o levou à prisão (há outras denúncias posteriores). Através do filme, reafirma sua condição de judeu perseguido e injustiçado e aproveita para deixar claro sua opinião sobre as mulheres por meio de uma personagem libertária. Assim, é seu próprio advogado fundamentando sua defesa, mesmo que caindo em contradição.

Se depois de tudo isto, o espectador fizer um esforço para separar o autor da obra, talvez possa observar uma certa qualidade artística envolvida. Por exemplo, a abertura com planos abertíssimos, que propõem um distanciamento físico e temporal dos fatos, é digna de análise. Assim como a concepção da direção de arte (Dominique Moisan), com sua fotografia em tons sombrios (Pawel Edelman). E  a criação da trilha musical (Alexandre Desplat), que ajuda a narrar o filme com sutilezas precisas, é outro aspecto a ser considerado se optarmos por uma análise imanente, valorando apenas  o que vemos em cena. A questão é que aí já estamos falando do produto de uma equipe e não cabe levar o extrafílmico para o trabalho da equipe. É por isto que premiar O oficial e o espião como Melhor Filme  seria um problema, digamos, menor. Mas dar o César de Melhor Diretor a Polanski tem uma carga simbólica  difícil de engolir. E já que a encenação (direção), que deveria orquestrar as contribuições da equipe com vigor criativo é apenas medíocre, nos é permitido concluir que a Academia das Artes e Técnicas Cinematográficas da França, responsável pelo César e composta por mais de 4.600 membros segundo seu site oficial, premiou metaforicamente a pessoa Roman Polanski: o diretor, o homem, sua história, sua integralidade moral. A academia francesa (não sua diretoria, que renunciou após as 12 indicações ao filme)  perdeu a oportunidade de avançar na luta pelos direitos de igualdade de gênero. Ao invés disto, disse ao mundo que crimes contra as mulheres podem ser relativizados. Que crimes de guerra não prescrevem, mas contra as mulheres, sim. A França vanguardista que conhecemos dá suas derrapadas.

 

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