Do Not Expect Too Much of the End of the World
76º Locarno (2023). O romeno Radu Jude, magistral e satírico como nunca
Por Ivonete Pinto | 07.08.2023 (segunda-feira)
Impagável. Na verdade, bem pagável, já que vale muito a pena pagar pra ver Do not expect too much of the end of the world (Nu aștepta prea mult de la sfârșitul lumii, Rom., 2023) quando estrear. O romeno Radu Jude assina esta première em Locarno, que compete na seção internacional pelo Leopardo de Ouro.
Seu cinismo e humor ácido, não deixam pedra sobre pedra. Quem viu seu título anterior, Má sorte no sexo – ou pornô acidental (2021), pode acionar suas boas expectativas, porque Radu Jude vem com tudo em inventividade. E se no anterior, lançado em plena pandemia, tínhamos o olhar ácido para com a atitude das pessoas, o uso de máscara, etc., aqui o diretor está conectado com o imaginário tiktoker, tirando proveito da linguagem para exercer sua crítica corrosiva ao mundo corporativo e ao comportamento masculino.
“Não espere muito do fim do mundo”, que talvez venha a ser o título no Brasil (alguma distribuidora precisa comprá-lo), é sobre o capitalismo selvagem que se tornou o regime romeno, depois do comunismo selvagem do ditador Nicolae Ceaușescu.
Para Jude, a Romênia virou uma máquina de produzir imagens baratas para os países ricos. Em sua análise debochada do capitalismo, o país saiu de um sistema fechado, quase tanto quanto o da Albânia (sobra piada para os albaneses também), para cair no mais cruel capitalismo, comandado pelas grandes corporações.
A protagonista lembra motorista de Uber, trabalha 16 horas por dia (às vezes mais) para uma produtora que recebe a encomenda de uma empresa austríaca. O tema é a segurança no trabalho e ela deve fazer entrevistas com pessoas que sofreram acidentes de trabalho para que, ao fim e ao cabo, o teor dos depoimentos seja a de que a culpa tenha sido dos acidentados.
A contratante, vivida pela atriz alemã Nina Hoss, faz uma entrada poderosa em uma reunião remota. O tamanho de seu rosto na tela e o modo patético como é paparicada pelos donos da produtora, diz muito dos desdobramentos das relações capital-trabalho. Mas o filme é também sobre cinema.
Bóbita – Ângela (a estupenda Ilinca Manolach), está sempre correndo freneticamente para convencer os acidentados, agora deficientes físicos, a gravarem depoimentos para sua câmera.
Ela passa a maior parte do tempo dirigindo no caótico trânsito de Bucareste, xingando e sendo xingada. Para não dormir no volante, não larga as gomas de mascar e a música em alto volume. Porém, o principal artifício para ficar acordada está nas gravações que faz (enquanto dirige, claro). Angela criou o personagem masculino Bóbita, usando filtros típicos dos tiktokers. Ele é abominável, não para de dizer coisas podres sobre as mulheres.
Tentando tornar o enredo um pouco mais claro, pode-se dizer que o filme estrutura-se em cima de pelo menos quatro dimensões: o vídeo institucional fruto de encomenda com os acidentados, a gincana que a protagonista faz para entregar os depoimentos no prazo e os vídeos que ela grava o tempo todo.
A quarta dimensão seguramente é a que não guarda relação aparente com o que acontece. Boa parte dos 163 minutos, em sua maior parte filmado em preto&branco, é cortada por sequências com uma taxista, dirigindo um velho carro por Bucareste, sendo assediada e xingada. A imagem é amarelada, como a dos filmes das décadas de 1970 e 1980. A precisão não importa muito, porque como a Roménia vivia fechada, a frota russa de carros até hoje deixou sua marca.
Mas o que seria aleatório, acaba fazendo sentido ao sabermos que são imagens de uma produção romena de 1981, chamada Ângela goes on, de Lucian Bratus. Atores daquele filme, aparecem neste como personagens acidentados.
Portanto, a liberdade narrativa de Radu Jude tem propósitos muito claros ao jogar com personagens similares, apostando que o público faça as devidas ligações. Se na era Ceaucescu, que caiu em em 1989, a vida já era aquela droga, as coisas não mudaram muito.
Com isso, Jude conjuga o atual momento econômico do país, com a estética das redes sociais e a estética “soviética” das imagens de arquivo. O resultado é uma atualização da precariedade social dos romenos através da figura da produtora-motorista tiktoker. As mulheres de hoje e as de 40 anos atrás continuam exploradas, apenas que em ritmo diverso.
E se estes filmes colocam mulheres como protagonistas e não homens, é sinal que elas sofrem a sua maneira, reagem a sua maneira. Fato que a teoria marxista não alcançou.
Aliás, Marx também dá o ar da graça em um dos tantos e sempre inventivos comentários do diretor-roteirista.
Perspectivas de gênero a parte, quando abordamos filmografias contemporâneas que lançam luz no tema do trabalho, é inescapável pensar em nomes como Robert Guediguian, Claire Denis e Ken Loach. Devemos incluir Radu Jude neste panteão, com a diferença que seu humor satírico, e sem compromisso com a elegância, é também uma forte atitude política.
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