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Festivais

12. Janela (2019) – Abertura

A resistência social e o corpo humano como elemento político pautam filmes na abertura desta edição

Por Felipe Berardo | 07.11.2019 (quinta-feira)

– foto de Victor Jucá/2018

O 12. Janela Internacional de Cinema do Recife começou ontem (6). Após um período de incerteza acerca da realização do festival nesse ano, devido aos cortes no apoio à Cultura implantados pelo atual governo, o festival consegue realizar sua 12ª edição com o patrocínio de última hora da Prefeitura do Recife e via edital do Fundo Setorial do Audiovisual. Outra forma de contribuição, no entanto, que chama mais atenção por sua beleza e representatividade é a campanha de financiamento coletivo apoiada por quase 300 pessoas que não só acreditam no cinema como meio de resposta a uma realidade política cada vez mais preocupante, mas que também acreditam no Janela como um espaço criado anualmente no qual pode-se viver e pensar cinema por um período de tempo, sejam dez ou 5 dias.

E o primeiro dia do festival não decepcionou àqueles que esperavam novamente por essa construção de um espaço que abre portas para esse ato de resistência política que é produzir e exibir arte em tempos que tornam essas atividades tão mais difíceis. Na programação do dia de abertura, O Farol (The Lighthouse, EUA, 2019), segundo filme de Robert Eggers, diretor de A Bruxa, pode chamar a maior parte das atenções, mas é no resto da programação com as sessões de curtas-metragens e longas-metragens que se pronuncia claramente um lado político mais relevante, com discussões e experimentações importantes e apropriadas para o momento que vivemos no país.

FILMES – O título de sessão oficial de abertura da 12ª edição do Janela ficou com O Farol, mas o primeiro filme da programação exibido na tela do Cinema São Luiz foi o curta-metragem Resista num pálido ponto azul (Linger on Some Pale Blue Dot, Alemanha/Israel, 2018), dirigido por Alexandre Koberidze, cineasta que já havia participado e sido premiado por Melhor Montagem no festival em sua 10ª edição com o longa-metragem Que o Verão Nunca Mais Volte.

O filme que apresenta esse ano é um documentário nada convencional e imperdível da programação do festival, gravado majoritariamente numa padaria em Israel, leva às últimas consequências a ideia de fragmentação da imagem presente no cinema de Lucrecia Martel, negando a representatividade pura e exigindo um esforço em abstração por quem o assiste. É uma obra extremamente moderna e instigante, não só por utilizar-se de manipulações digitais para a construção de suas imagens, mas principalmente por parecer mais interessada pela realidade tangível e pela experiência sensorial que por possíveis simbologias. Os movimentos dos corpos, das máquinas e até mesmo das próprias imagens adquirem ritmos hipnóticos, assim como também as visões de farinha e óleo sobre tecido, metal e mármore que são captados em detalhes como merecedores de atenção especial.

O curta também possui uma trilha sonora grandiosa que junto às imagens criam uma belíssima ode ao trabalho cotidiano, tratando o labor manual quase como se origem indiscutível do mundo. Dividindo a sessão com o curta alemão-israelense está o longa documentário, Noite passada te vi sorrindo (Last night I saw you smiling, Camboja/França, 2019), dirigido por Kavich Neang, é uma representação dolorosa das consequências advindas da especulação imobiliária e da gentrificação de espaços geográficos. Há aqui um registro dos últimos dias vividos no “Prédio Branco”, um conjunto habitacional criado nos anos 1970 pelo governo cambojano, de quase 500 famílias que estão sendo expulsas.

O longa consiste majoritariamente de uma atenção minuciosa ao processo logístico necessário para a mudança e retirada de todas posses pelas famílias — incluindo retirada de portas e janelas, formas de transporte e transferências de pagamentos realizados pelo governo — assim como pelas reminiscências nostálgicas sobre tempos passados em que aquelas pessoas viviam de forma mais lúdica sem preocupar-se com moradia e por declarações de apontado cunho político comparando o que está acontecendo ao período de ditadura — “A única diferença é que agora estamos recebendo algum dinheiro.”. Esses elementos fazem paralelos e misturam-se criando valores emocionais e políticos muito claros por meio daquele espaço sensível, de forma não tão diferente do proposto pelos longas passados de Kléber Mendonça Filho.

Ao fim, quando vê-se as paredes quebradas e os quartos vazios não mais preenchidos por colchões com crianças e velhos sentados assistindo televisão, é difícil não entender exatamente o que está acontecendo. A produção, inclusive, ganha uma força ainda mais particular nesse sentido pela auto-representação presente no filme, já que logo fica claro que o diretor é o filho de uma das famílias sendo expulsas e possui laços especiais com aquele local e com aquelas pessoas, construídos a partir de décadas de vivências e das memórias subsequentes que ficaram.

Still de “Noite passada te vi sorrindo” (Camboja/França, 2019), dirigido por Kavich Neang.

Logo em seguida, aconteceu a primeira sessão de curtas nacionais intitulada “Farol Aceso” com cinco obras que parecem todas ter um interesse particular pela ideia de retomar as subjetividades e os próprios corpos como instrumentos políticos pessoais capazes de afetar o coletivo. Primeiramente Cinema comtemporâneo (PE, 2019) , dirigido por Felipe André Silva, utiliza o formato de fotofilme para criar uma decupagem a partir de uma única fotografia essencial para a história contada pela narração em off. O uso de uma fotografia aparentemente antiga já é uma ótima decisão para criar esse efeito de memória subjetiva externa ao indivíduo, servindo de paralelo para o argumento do filme sobre seu próprio dispositivo de 1ª pessoa em que o narrador dá sua voz, mas o filme é o que relata.

Quanto a esse argumento, inclusive, talvez a real sensibilidade e vulnerabilidade posta aqui para ser vista abertamente entre em conflito com a auto-consciência formalista da obra em seu início e fim, mas o resultado final ainda é admirável. Numa lógica completamente diferente está Caranguejo rei (PE, 2019) – leia também aqui -, dirigido por Enock Carvalho e Matheus Farias, que busca através do cinema de terror alcançar pontuais críticas políticas sobre a destruição da natureza por construtoras, mais especificamente do mangue recifense. Quanto mais regado de especificidades relacionadas ao Recife, inclusive, mais forte parece tornar-se a mensagem  — as figuras dos caranguejos e mangue são essenciais aqui — e a transformação corporal cronenbergiana do protagonista é particularmente interessante quando relacionada aos filmes que o acompanham na mostra, mas em alguns momentos o filme parece priorizar imagens clássicas do gênero acima dessa especificidade cultural que contribui para o seu maior peso político.

A produção incontestavelmente possui uma finalização impressionante em sua polidez com efeitos práticos de maquiagem e digitais, porém o que mais impressiona é a simplicidade poderosa alcançada pelo monstruoso desenho de som quando associado às raízes retorcidas das árvores do mangue. A mostra continua com Tempestade (PE, 2019) – leia também clicando aqui -, dirigido por Fellipe Fernandes, que continua com o tema recorrente na mostra de corpos em transformação como ferramenta política, particularmente relevante nas belas cenas de dança em festas que começam e fecham o filme, contrapondo essa liberdade com a opressão sistêmica imposta aos mesmos indivíduos pelos uniformes no local em que trabalham.

Há pequenos interlúdios surreais para simbolizar essa opressão e algumas cenas de diálogo para guiar o necessário comentário político, mas permanece na mente essa dualidade entre corpos livres para viver sua subjetividade e presos pelo sistema vigente, assim como o ápice do filme que apresenta-se como um significativo microcosmo para a conscientização de classe do país.

Still de “Tempestade” (PE, 2019), dirigido por Fellipe Fernandes.

Já A mulher que sou (PR, 2019), dirigido por Nathália Tereza, assume uma bela posição naturalista sobre uma família negra composta por mãe e filha, representando seus universos de forma cotidiana e sem grandes conflitos, ao mesmo tempo que possui um claro entendimento político do mundo em que esses personagens vivem, comentando sobre fatores políticos e econômicos.

O curta assemelha-se também de alguma forma aos valores presentes em Bacurau, especificamente pelo valor catártico em ver esses indivíduos que costumeiramente são postos em posições marginalizadas como atores primordiais sobre suas próprias vidas e iniciativas. Além disso, o filme acaba com uma belíssima cena de sexo tratada com uma incrível sensibilidade, rompendo drasticamente com a estética do resto do curta para causar um tipo de furor no público.

O último filme da mostra é Swinguerra (PE, 2019), dirigido por Bárbara Wagner e Benjamin de Burca, um musical com trilha e coreografia partindo do brega-funk e do “passinho” com os grupos de dança Extremo e La Mafia participando como personagens. Faz sentido esse ser o curta escolhido a fechar o programa, visto que ele epitomiza essa lógica do uso dos corpos como instrumento político. A narrativa aqui é minimalista e não há grandes truques formais para impressionar com as cenas de dança, quase tudo funciona em relação a força das coreografias dos dançarinos que está sempre em primeira instância. As belas direção de arte e de fotografia mantém-se com ideias consideravelmente simples, sempre a complementar a força dos números musicais e não assumir em suas próprias mãos a tarefa de criar interesse, mostrando um auto-controle louvável, provavelmente alcançado através da experiência por parte dos realizadores.

Still de “Swinguerra” (PE, 2019), dirigido por Bárbara Wagner e Benjamin de Burca.

Voltando aos longas-metragens o filme Jogos dirigidos (PE, 2019), dirigido por Jonathas de Andrade, teve participação especial de uma banda ao vivo que por boa parte limitou-se a pontuar momentos específicos do filme com apenas algumas sequências em que diversas camadas de som e instrumentos fundiram-se para criar algo caótico e entrópico para a ação em tela.

O longa trata sobre uma comunidade piauiense de surdos-mudos realizando uma série de exercícios — majoritariamente pessoas contando histórias numa linguagem própria para o resto do grupo intercalando-se com atividades mais físicas como danças de cadeiras ou esconde-esconde.  Esses exercícios inicialmente não tem propósito muito claro, mas logo é possível perceber que através dessas atividades aparentemente ingênuas o grupo de pessoas passa a criar laços de confiança cada vez mais fortes, até que as histórias que partem de anedotas sem tanto peso dramático comecem a tornar-se relatos extremamente pessoais de traumas e dificuldades vividas, algo que os outros indivíduos nunca pareceram sequer considerar como possibilidade.

Uma cena em específico intercala a história de uma das personagens com uma busca de esconde-esconde num cemitério, criando um espaço representativo de mortes e traumas em algo lúdico com que todos possam compreender e lidar emocionalmente. As histórias das mulheres são repletas de violência familiar doméstica cometida contra elas e as dos homens apresentam valores autodestrutivos advindos de uma masculinidade tóxica. Todas questões já bastante exploradas em documentários semelhantes, mas que aqui assumem uma força especial pelo senso de comunidade e empatia construídos com o passar da duração de 57 minutos do filme.

Elemento esse que provavelmente é o ponto mais questionável em relação ao filme, definitivamente há uma certa força na reconstrução constante de ideias e conceitos tornando-se perceptíveis através da repetitiva estrutura, mas algumas ideias mesmo que interessantes parecem ser estendidas demais. Um bom exemplo é a sequência final do filme em que temos uma repetição das palavras e dos elementos recorrentes entre as histórias contadas por diferentes indivíduos, interessa por mostrar esses pontos cruciais na vida daquelas pessoas e as semelhanças presentes, mas a longa extensão da cena acaba passando a mensagem e cansando-a na mesma sequência pela reiteração constante.

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