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Festivais

12. Janela (2019) – 2º dia

A resistência política do Janela se espalha pelo Recife em seu segundo dia.

Por Felipe Berardo | 09.11.2019 (sábado)

O Janela Internacional de Cinema do Recife continua sua 12ª edição buscando uma forma semelhante de força política presente em seu dia de abertura, ao mesmo tempo que diversifica seu alcance pela intensificação da programação no Cinema da Fundação (Derby) e pelas primeiras sessões do festival exibidas no recém inaugurado Cinema da UFPE, além claro da sessão especial de Bacurau, comentada por Kléber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, realizada no Cinema do Porto Digital. A energia de resistência política tão forte no Cinema São Luiz no dia de abertura do evento agora espalha-se pelo Recife numa busca por infectar a cidade com o mesmo movimento e vigor, proporcionando isso através do cinema defendido pelo Janela como importante.

FILMES – O segundo dia do festival no Cinema São Luiz começou sua programação competitiva de curtas-metragens nacionais com o programa “Criar as leis”, composto por três filmes que tratam de questões valiosas presentes na discussão do cinema político contemporâneo.  São elas a crença no poder inerente nas histórias contadas por vítimas, e como a auto-representação desses injustiçados  (indivíduos que vivenciam tais realidades tratadas) atribui força e legitimação ao que é visto.

A primeira obra é Quebramar (SP, 2019), dirigida por Cris Lyra, um documentário sobre uma viagem de ano novo realizada por um grupo de jovens mulheres que são não só personagens aqui, mas também responsáveis diretas pela produção e por suas representações dentro do filme. A viagem e as interações registradas são repletas de um carinho próprio, com as mulheres criando, a partir de si e de suas companheiras, um refúgio emocional para os traumas e feridas causadas pelo universo opressor vivido, evidenciado aqui através de histórias chocantes e comoventes com claras consequências sobre suas vidas atuais. Um exemplo disso é a cena em que vemos um relato de violência sofrida por uma das mulheres que  possui gatilhos de ansiedade e de ataques de pânico por sons altos, algo particularmente relevante aqui pelo cenário de fogos no ano novo. Leia mais sobre Quebramar clicando aqui,

Para todas as moças (ES, 2019) – uma curta-metragem video-performance – cria imagens relacionadas ao feminismo, ao movimento LGBTQI+ e a religiões afro-brasileiras para acompanhar uma forte narração que toma uma atitude de confronto em relação a injustiças e preconceitos estabelecidos contra essas identidades marginalizadas. Há uma mistura entre o físico pela reivindicação política e o metafísico pela lógica quase de bruxaria assumida nas palavras escolhidas pela narradora – provavelmente a sinopse posta pelo festival – que consiste numa das frases mais pungentes do curta, melhor ilustre isso: “Macumba de travesti, só bixa consegue desfazer. Feitiço de bixa, só travesti consegue quebrar”.

A sessão de curtas, então, chega ao fim com Sete anos em maio (MG, 2019), dirigido por Affonso Uchôa, que toma os valores principais do programa estabelecido aqui a seus ápices, especialmente através de sua principal cena que consiste de um relato extremamente longo por parte de Rafael dos Santos, descrevendo em detalhes extremamente gráficos a inexplicável violência policial que tirou sua vida dos eixos e os consequentes anos de mudanças, vícios e medo constante pelos quais sobreviveu. O diretor, em entrevista dada durante o 8º Olhar de Cinema, comentou sobre o processo de construção e seleção para definir que partes da história seria contada por Rafael, então há um artifício cinematográfico sendo posto aqui. Há, no entanto, uma força visceral quase indescritível vinda da atuação de Rafael como si próprio aqui. Parece revivenciar dolorosas imagens e memórias ao mesmo tempo que as divide com quem as escuta.

Eventualmente, naquele escuro da noite que encobre rostos e quase toda a locação, revela-se outro personagem que escutava, juntamente ao público, toda a história. O ouvinte diz possuir uma história similar e o que era discurso se transforma em diálogo, tentando retirar questionamentos e compreender de alguma forma o que foi dito, a discussão filosófica entre marginalizados com entendimento próprio sobre suas dores pessoais e sobre o mundo e a realidade que permite tantas histórias repetidas. A sequência inicial e final do filme consistem de cenas mais metafóricas com a reconstrução do ataque realizado pelos policiais contra Rafael e com um jogo de “vivo/morto” que passa mensagem clara sobre a violência e assassinatos de cidadãos marginalizados por policiais, mas é durante o “material verbal-cinematográfico”, como chama o diretor, que está a maior força do filme.

LONGAS – Em seguida, começaram as sessões de longas-metragens da programação do festival com o clássico Sem chão (Losing ground, EUA, 1982), dirigido pela diretora negra Kathleen Collins, que trata de um casal negro: um bem sucedido e escandaloso pintor e uma renomada professora de filosofia que estão passando por uma crise em seu relacionamento. A primeira metade do filme tem como maior ponto de interesse o valor político presente na representação de excelência negra, criando um tipo de narrativa que muitas vezes parece exclusivamente proposta para personagens brancos. Há, no entanto, em sua maior parte, diálogos verborrágicos e óbvios demais, interessados em questionamentos de cunho filosófico e científico que são postos de forma inábil para a construção de uma unidade dramática funcional para o longa.

Com o passar do tempo, porém, ao seguir a jornada da protagonista, que se força a aderir a uma espontaneidade não natural a sua identidade própria, numa busca por algum êxtase em sua vida, assim como seu marido parece conseguir alcançar naturalmente, o filme parece acompanhar esse arco também em sua própria estrutura. O filme libera-se de suas amarras narrativas não tão valorosas e abre espaço para algo mais livre e espontâneo, adquirindo uma lógica metalinguística que comenta habilmente sobre questões relacionadas a arte, performance, cinema e identidade, ao mesmo tempo que elabora um ritmo e construção dramática não presente em sua primeira parte.
Tudo culminando em direção ao final em que performance e realidade misturam-se completamente. A protagonista entende, a partir da resolução criada para a personagem que interpreta, as amarras autoimpostas com que vive e libera-se destas num apertar de gatilho que possui valor catártico absoluto. Torna-se um filme estranhamente essencial sobre a capacidade de transformação da arte sobre indivíduos.

O longa seguinte da noite foi o documentário, Casa (Brasil, 2019), dirigido por Letícia Simões, que trata sobre os relacionamentos familiares da cineasta, especialmente com sua mãe e avó, partindo de memórias tanto internalizadas quanto externas na forma de cartas, fotografias e residências abandonadas que em algum momento já foram de grande importância para as personagens. Quando se trata de documentários autobiográficos familiares, quase sempre há um maior interesse próprio pelo material por parte do realizador que por parte do público, compreensível devido a inseparável ligação que juntam cineasta e o gravado, porém poucos filmes do tipo conseguem ser tão valorosos e de difícil julgamento quanto Casa.

A cineasta e narradora parece compreender essa condição de seu filme e cria um afastamento pela narração que trata todos personagens, até a si mesma, em terceira pessoa, também é admirável nesse contexto o interesse e a compreensão histórica da família que serve também como microcosmo do país, enquanto miscigenada, composta por descendentes de colonizadores e de escravas. Isso dito, o que realmente faz o filme funcionar são as interações entre avó, mãe e filha que possuem complicadas histórias e relações emocionais entre si, construídas por décadas de convivência de valores positivos e negativos.

É admirável o quanto a diretora está disposta a dividir com o público a realidade familiar que vive, o quanto se expõe das interações emotivas que transformam-se em injustiças emocionais e ásperas discussões entre as figuras maternas aqui. É emocionante, então, constatar toda essa jornada emocional capturada pelo passar dos anos, envolvendo revelações e acontecimentos marcantes na vida das personagens.
Através do entendimento específico e único da dualidade amor-desgosto nas relações criadas entre a família disposta aqui, compreende-se verdades e questionamentos gerais e maiores sobre a família que parecem quase universais. Leia mais sobre Casa clicando aqui.

A última sessão da noite exibida foi uma sessão dupla composta por filmes dirigidos por Johannes Nyholm, iniciando-se com o curta-metragem de animação stop-motion, A História do Pequeno Puppetboy (Sagan om den lille Dockpojken, Suécia, 2008), que apresenta uma técnica aparentemente rudimentar de animação que demonstra-se, com o passar da duração, surpreendentemente criativa a estética hiperestilizada que se propõe. Aqui, os pontuais acontecimentos bizarros interessam, especialmente quando aliados a uma experimentação com a animação, como nas aparições dos pequenos homens que vivem nas paredes da casa do protagonista ou na lógica bidimensional criada para as imagens de televisão, porém a narrativa de um homem recluso e asqueroso tentando fazer sexo com uma mulher que vai a sua casa, quando reunida ao humor crasso acaba sendo mais desagradável que cômico ou particularmente interessante. Leia mais sobre A história do pequeno Puppetboy clicando aqui.

O longa exibido logo depois chama-se Koko-di Koko-da (Suécia/Dinamarca, 2019) e mostra uma semelhante desagradável sensibilidade, dessa vez em live-action e aliado ao gênero de terror. O roteiro conta a história de um casal que, após um trauma inimaginável sofrido logo no início do filme, perdem sentimentos um pelo outro e afastam-se cada vez mais como casal, até que são surpreendidos numa viagem de acampamento por um bizarro trio de sádicos que os matam. O filme adota, então, uma estrutura de lapso temporal similar a Feitiço do tempo em que o casal é continuamente agredido, independente do que façam.

Novamente são as intermitentes situações surreais que destacam-se positivamente, em particular as cenas de animação intercaladas em momentos cruciais, porém fora isso não há muito mais de agradável que não alguns bons enquadramentos e bons designs de personagem. O diretor parece usar Funny games: Violência gratuita (1997) como referência direta para seus jogos sádicos, mas falta o comentário mordaz sobre a sede de sangue proposta por Haneke e também a maturidade para criar situações perturbadoras que ultrapassem o nível quase adolescente de abuso e violência. Isso, aliado a justificativa final criada para os atos, tratados como catalisadores para uma redenção emocional e temática para o casal acaba tirando grande parte do possível valor pretendido pelo longa.

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