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Críticas

Estados Unidos vs. Billie Holiday

Lady Day merecia mais, ainda que Andra Day esteja gigante nessa cinebiografia.

Por Luiz Joaquim | 25.04.2021 (domingo)

Guiado em sua maior parte da edição pelos tradicionais ‘plano/contraplano’ para ilustrar os diálogos, Estados Unidos vs. Billie Holiday (United States vs Billie Holiday, EUA, 2021), de Lee Daniels, parece apostar, a certa altura, num plano sequência como, talvez, seu grande momento cinematográfico. Seria, no caso, uma demonstração em que a composição da imagem mostrada falaria de seu drama por si só, sem o subterfúgio da palavra.

Acontece quando a protagonista Billie Holiday (Andra Day) segue com seu grupo num ônibus, numa turnê musical pelos Estados Unidos, e é importante dizer que estamos no final dos anos 1930/início dos 1940.

Com o ônibus estacionado na beira de uma estrada qualquer, vemos Billie procurar um lugar seguro para aliviar a bexiga no meio do mato, até que ela escuta o choro de uma criança e, seguindo o som, se depara com uma cena grotesca promovida pela Klu Klux Kan (o que é uma redundância, já que qualquer cena promovida pela KKK é grotesca por natureza).

A cena com que ela se depara é de fato perturbadora, e o choro da criança só sedimenta o drama, mas a solução dada para o tal plano sequência sai pela culatra uma vez que o balé ensaiado para os descaminhos que a protagonista vai correr a partir desse ponto, em seu trajeto de sofrimento nesse plano-sequência, tem no termo ‘ensaiado’ um caps lock gigante e sublinhando com marcador de texto amarelo brilhante.

É, a propósito, este o único momento em que Andra Day (concorrendo ao Oscar hoje pela sua performance aqui) mostra-se mal. Não dá para acreditar ou, não dá para acompanhar seu sofrimento, pelo choro plasticamente insistente e grandiloquente uma vez este não combina com a personagem em nenhum outro momento do filme.

Só piora quando lembramos que Lady Day, a deusa absoluta do jazz mundial, não combinava com exposições dramáticas em público (e sim pela altivez), o que só aumenta o risco (e o fracasso) de Lee Daniels em tentar compor um plano-sequência carregado no melodrama, como este, que, claramente, desce pelo ralo sem que lamentemos por isso.

Até chegar nesse ponto, Estados Unidos vs. Billie Holiday tem em seu trunfo – provavelmente seu único aqui – a atriz Andra Day que, cuidadosamente mimetizou os trejeitos de Billie quando estava atrás de um microfone e adequou seu timbre e inflexões na voz para tentar chegar perto daquilo que há de divino quando ouvimos as gravações de Lady Day.

O resultado desse esforço de Andra cativa. E, se fôssemos obrigados a apontar pelo menos um acerto do diretor Daniels, ele estaria na opção econômica de apresentar a performance de Andra para Strange fruit, com um enquadramento fechado e estático, confiando no talento da atriz, que não desaponta. Confira no vídeo, abaixo.

 

Que bom pois, este sim, é o ponto crucial da obra, que gira em torno, exatamente, das consequências dessa composição de Abel Meeropel (ou Lewis Allan, como ele assinou) na voz de Billie, cujo lançamento ocorreu em 1939 tornando-se um dos maiores (o maior?) símbolo musical antirracista de todos os tempos, e um eterno problema para a cantora.

Seus versos falam dos negros enforcados no sul dos EUA, pendurados em árvores, como frutas podres, para que os corvos venham colhê-los. Não tem nada de doce, perto do melancólico e amoroso jazz de rasgar a alma que integrava a maior parte do repertório de Lady Day. Para entender melhor, vale ler um texto de José Teles sobre o assunto. Clique aqui.

Tudo o que está em torno desse momento, em Estados Unidos vs…., parece equivocado. A começar pela direção de arte barroca, gritando constante e continuamente “Ei, me percebam! Olha eu aqui!”, com cenários e figurinos brilhando em um sem número de cores berrantes que podem queimar a retina do espectador desavisado.

Erros passam também pela edição gaguejante no primeiro terço do filme e terminam, por exemplo, com a inserção capciosa de Ain’t nobody’s business (‘Não é da conta de ninguém’, numa tradução livre) na playlist de canções que integram o longa-metragem. Tudo bem… pode-se dizer que a escolha é mais uma opção ideológica de que um erro, mas não se considerarmos que Billie é dona de outras performances bem mais emblemáticas do ponto de vista artístico.

Enfim… teremos de esperar um pouco mais para uma cinebiografia a altura de Billie. E se vier novamente com Andra Day, será bem-vinda.

Em tempo: Estados Unidos vs. Billie Holiday pode ser visto no Brasil pela plataforma da Amazon Prime Video.

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