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Festivais

10º Olhar (2021) – Rio Doce

Pelos olhos tristes de um ex-artista. A estreia de Fellipe Fernandes num longa-metragem.

Por Luiz Joaquim | 10.10.2021 (domingo)

Há, aí, um novo filme pernambucano que deveria ser visto por todos os recifenses/olindenses. Quando falamos ‘todos’, entendam de qualquer faixa etária ou classe social. É ao Rio Doce (Bra., 2021) que nos referimos aqui, a estreia de Fellipe Fernandes a frente de um longa-metragem. E que bela estreia. O filme compõe a competitiva do 10ª Olhar de Cinema: Festival Internacional de Curitiba e poderá ser visto online, na plataforma do festival (ao preço de R$ 5) nesta quarta-feira (13) – clique aqui.

Fellipe tem uma pequena, mas elogiada e sólida trajetória com seus curtas-metragens – O delírio é a redenção os aflitos (que estreou em Cannes, 2016) e Tempestade (2019) –, obras que ganham ainda mais estofo de coerência autoral quando agregados ao seu novo Rio Doce.

O olho de Fellipe está voltado para o subúrbio olindense – não à toa, temos no título do novo trabalho algo tão objetivamente geográfico (‘Rio Doce’ é um muito conhecido e popular bairro da pernambucana Olinda). É por essa perspectiva que o cineasta desenha suas locações e personagens. E, no cinema de Fillipe, estas figuras e paisagens estão tão bem integrados entre si, nos enquadramentos estabelecidos, que só reforça a dupla segurança que o diretor possui sobre o entendimento de um e de outro. Daquela realidade social e daqueles que a habitam.

No caso, temos Tiago (Okado do Canal – leia sobre o artista mais abaixo), jovem morador de Rio Doce, que prestes a completar 28 anos, enxerga a sua vida numa crescente desarmonia. Está desconectado da filha de quatro anos e da ex-esposa que amava, mas que não conseguiu evitar a separação (ainda que amigável); e apesar de empregado, trabalhando num parque de diversões eletrônicas num shopping no Centro do Recife, não dá conta de pagar o que deve no conserto da moto, na conta da energia cortada em seu pequeno apartamento e, pior, não consegue pagar a credores famosos por serem violentos. Fã e antigo praticante do rap de improviso freestyle, nem por essa paixão pode extravasar a tensão, já que sofre de uma crescente dor, já crônica, nas costas.

O enredo de Fillipe coloca na vida do rapaz, negro, um novo elemento que o vai unir, familiarmente falando, a três irmãs brancas de classe média alta (vividas por Thássia Cavalcanti, Amanda Gabriel e Nash Laila, habituais parceiras do diretor, vistas também juntas em O delírio…).

É o contexto perfeito para Rio Doce ressaltar os contrastes e as distâncias entre as duas classes sociais, com suas limitadas e particulares perspectivas. Mas o universo criado por Fellipe está mais interessado é nas aproximações destes dois mundos. E ela se dá pela melancolia.

Por esse caminho, se temos Helena (Thássia) tentando fazer uma ponte que encurte essa distância, em Catarina (Amanda Gabriel) encontramos a rejeição preconceituosa (não racial, mas social); e com a mais jovem e frágil Laura (Nash) há a aproximação pela identificação, seja geracional, seja pela tristeza das dificuldades da vida. Bem distintas das de Tiago, diga-se de passagem, mas, ainda assim, tristeza.

Amanda Gabriel como Catarina em “Rio Doce”

A propósito, vale pontuar o preciosismo nesse roteiro burilado por Fellipe, tão carinhoso com todas as suas crias. Mesmo com as que estão ali para pontuar contrastes, como Catarina. Se num almoço de família ela evidencia sua posição elitista e antipática, logo depois temos a pista de uma mágoa com o seu falecido pai e, noutro momento, pela boca de Laura, sabemos de seu valor como irmã cuidadosa.

Um parêntese para falar da atriz Amanda Gabriel, que veio solidificando sua carreira como uma preparadora de elenco competente no cinema brasileiro, e dando pouca chance de vermos seu valor defendendo uma personagem. Aqui, Amanda faz sua Catarina crescer para uma dimensão que, talvez, o roteiro não tenha previsto. Na sequência do famigerado almoço de família, temos nuances, como um simples movimento de cabeça, que define Catarina para além de qualquer explicação que seu diretor possa lhe oferecer.

Além de Amanda, Nash Laila é outra que marca a sua presença com uma segurança comovente, num personagem rico em difusa fragilidade emocional, que, provavelmente, não tenha encontrado paralelo ao longo de sua carreira no cinema.

Nash Laila é Laura

Entretanto, o crédito do diretor Fellipe precisa ser também reforçado. Tanto como aquele que cria o ambiente adequado para o ator florescer em sua performance – e a maior prova está na contenção que ele consegue estabelecer para Okado, que faz o seu Tiago se expressar belamente apenas com um olhar e um silêncio -, e também como aquele diretor que constrói uma narrativa visual fluida, aproveitando muito bem o que tem à mão, como as reais imagens de arquivo do artista Okado para dar estofo às memórias de seu personagem e, assim, ajudar o espectador a entender melhor quem foi o adolescente Tiago e no que se tornou o adulto Tiago.

Ainda sobre os personagens, outra expressão de carinho de Fillipe por eles está naqueles que são satélites de Tiago, como a meia-irmã Carla (Dandara de Morais) e o padrasto Marcelo (Carlos Francisco, de Bacurau). Ambos ganham seu momento, dando àqueles que assistem ao filme a ideia de que ali estão pessoas de verdade, com humor, com um passado e com sentimentos legítimos, de gente.

Fábio Leal, Samuel Mucão, Carlos Francisco e Dandara de Morais em cena de “Rio Doce”

Esse pequeno grande filme, que originalmente tinha o título de O último quintal, persegue a trilha de Tiago o tempo inteiro, com Okado em quase 100% das cenas, o que só aumentava a responsabilidade do artista e a confiança de Fellipe.

Para se lançar nesse abismo, que é criar um longa-metragem, Fellipe cercou-se dos melhores não apenas na frente das câmeras. Com a fotografia de Pedrinho Sotero, suas alegorias estilísticas deram um condimento estético especial para Rio Doce ­– atenção para o zoom in no besouro do jardim, e no zoom out da menina com óculos de realidade virtual -, com esta última servindo de impactante passagem de cena, pela montagem certeira de Quentin Delaroche (Bloqueio).

Thales Junqueira assina a direção de arte, a produção de set é de Tiago Melo (Azougue Nazaré), Milena Times (Represa) ajuda como 1ª assistente de direção, Fábio Leal* (O porteiro do dia) assume a preparação de elenco com Carolina Bianchi, e ninguém menos que Adelina Pontual auxilia na continuidade, com todos sob os cuidados das produtoras Dora Amorim, Júlia Machado e Thais Vidal. E, já que falamos de Adelina, vale lembrar que ela lançou há oito anos o pouco reconhecido documentário Rio doce/CDU (leia aqui).

E por que todos os recifenses/olindenses deveriam ver Rio Doce? Porque, assim sendo, finalmente chegaria algo importante àqueles que ainda não perceberam esse algo: que a sua realidade visual, social e emocional é tão valiosa, venha de que bairro vier, a ponto de poder ir parar no cinema por um filme cheio de qualidades. Coisa que a produção feita em Pernambuco vem dando conta muito bem, sim senhor.

Quem é Okado do Canal? O Bboy, rapper e ator de 28 anos é líder comunitário da Favela do Canal, no bairro do Arruda (Recife), tem nome de batismo Ellan Barreto e, ainda na adolescência, começou a se interessar pelo Hip Hop. Quando brincava nas batalhas de Break, se apaixonou pelo rap de improviso freestyle. De lá pra cá, além de se tornar um influente nome de seu bairro, lançou seu primeiro álbum – Cada dia daria um rap –, chegando a ser reconhecido no exterior.

* Fábio Leal também está presente no 10º Olhar apresentando seu 1º longa-metragem, co-assinado com Gustavo Vinagre. Deus tem Aids estará disponível amanhã (11) na plataforma do festival (clique aqui).

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