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Baronesa

Primeiro filme de uma jovem diretora mineira, Baronesa é corajoso, porque expõe os riscos dessa aventura

Por Marcelo Ikeda | 27.01.2022 (quinta-feira)

Assim como A vizinhança do tigre (2014), de Affonso Uchoa (que atuou como montador do filme de Juliana), Baronesa, de Juliana Antunes, utiliza como ponto de partida o “método Costa”, para construir um olhar delicado sobre a vida na periferia dos grandes centros urbanos. Quando falo em “método Costa”, faço referência ao que Pedro Costa realizou em No quarto da Vanda (2000), em que o realizador, claramente um elemento externo, convive junto aos imigrantes cabo-verdianos no bairro de Fontainhas, em Portugal, na iminência da demolição das casas. O cinema de Pedro Costa, e especialmente este filme, se tornou notável pela forma como o diretor criou estratégias de encenação que dessem a ver, de forma rigorosa, o cotidiano sem perspectivas daqueles moradores em situação de vulnerabilidade.

Baronesa possui muitas semelhanças com o filme de Costa, não apenas pelo fato de ser um filme entrincheirado, em que duas amigas (Andréia e Leid), sem poder caminhar pela comunidade dividida pelo tráfico, existem enquanto fabulam sua existência, dentro de suas próprias casas, ou no máximo no estreito quintal. No entanto, Juliana Antunes, ainda que a partir de nítida filiação com o filme de Costa e também com o de Uchoa, adota o seu próprio caminho na construção de um modo de encenação aparentemente simples mas absolutamente singular.

Ao retratar a difícil vida de algumas personagens nessa comunidade na periferia de Belo Horizonte, Antunes adota uma estilística de direta inspiração do cinema contemporâneo, ao recusar a apresentação esquemática de um contexto sociopolítico opressor, e, em vez disso, propõe examinar como a falta invade o cotidiano dessas personagens. As micropolíticas atuam em prol de um cinema da afetividade, numa relação orgânica entre cinema e vida. Essas personagens, mesmo num contexto de vulnerabilidade, possuem enorme potência e desejo, na medida em que são capazes de performar para a câmera, de refletir sobre sua existência, de pôr-se em cena de frente. As personagens não são meros joguetes, como representantes de classe e etnia, elas têm vida própria. A postura afirmativa de Baronesa está na forma como os corpos e as vozes preenchem a tela de uma afetividade possível.

De forma mais ampla, é possível relacionar Baronesa com uma grande filiação do cinema contemporâneo afetivo brasileiro, de O céu sobre os ombros (2010) a Morro do céu (2009), pela forma como a realizadora combina elementos do documentário e da ficção para dar corpo a uma realidade periférica, vista, no entanto, a partir de uma micropolítica da afetividade, por uma via positiva, e não por um discurso macropolítico ou sociológico. A forma delicada e profunda como Juliana conseguiu estabelecer uma relação de cumplicidade com suas duas personagens centrais é notável – são mulheres negras que assumem o protagonismo de suas vidas, mesmo com todos os riscos de suas opções. Na delicadeza desse olhar feminino, Baronesa também pode ser relacionado com A falta que me faz (2009), de Marília Rocha, outra cineasta mineira.

Primeiro filme dessa jovem diretora mineira, Baronesa é corajoso, porque expõe os riscos dessa aventura – e inclusive observa essas mulheres sem paternalismo. Algumas cenas despertaram polêmica em algumas exibições exatamente porque Juliana não busca retratar suas personagens de forma puramente idealizada ou romântica – em alguns momentos, elas servem como aviõezinhos de drogas, ou não conseguem cuidar tão bem de seus filhos.

A afetividade de Juliana não idealiza suas personagens, permite mostrá-las sem pudores, ou ainda, sem resquício de um moralismo panfletário ou paternalista. A vida transborda em Baronesa mesmo nas possíveis falhas ou ausências dessas personagens – “falhas” segundo um padrão moral herdado do bojo socioeconômico dos próprios espectadores, em geral distinto das personagens. Ao final desse percurso, Baronesa nos mostra que é possível promover um retrato delicado e afetivo de personagens em situação de vulnerabilidade sem romantizar ou idealizar suas naturezas. A suposta vulnerabilidade se transforma em um vulto de força – sinal da resistência de jovens mulheres que lutam para seguir o curso de suas próprias vidas.

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