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Roterdã, IFFR (2022) – A Human Position

Uma nórdica posição

Por Marcelo Ikeda | 12.02.2022 (sábado)

Por aqui temos uma visão muito restrita da sociedade nórdica. Por uma primeira impressão, vemos um país muito frio rs. Uma sólida qualidade de vida, com pouca desigualdade social, como uma grande classe média, sem intensos conflitos ou tensões mas uma dificuldade de expor os sentimentos e uma certa melancolia.

Em muitos aspectos, o norueguês A human position (2022, 78 min) corresponde a essa visão da sociedade nórdica. O filme acompanha o cotidiano de Asta, uma jovem jornalista, que retorna ao seu trabalho após um longo período de afastamento. Basicamente o filme oscila entre o trabalho de Asta, em que ela precisa se deslocar para fazer entrevistas dos mais variados assuntos, com seu cotidiano em casa, com sua namorada – uma mulher negra.

Entre o trabalho e a casa, Emblem radiografa um certo mal estar, uma certa melancolia por meio de um estilo contemplativo extremamente discreto, que procura observar o interior dessa personagem mas preservando respeitosamente uma certa distância, sem nenhum grande impacto emocional ou sensacionalismo.

Com isso, poderíamos até associá-lo a um certo cinema japonês, como Ozu. Mas a falta de conexões familiares (não temos informações sobre a família, Asta vive a sós com sua companheira) e de qualquer perspectiva moral, deslocam o eixo da rotina e do trabalho não para algo transcendente mas para um certo vazio. Se sua companheira é negra (o que, a princípio, nos surpreende dadas as características étnicas da sociedade nórdica), o filme não desenvolve em primeiro plano nenhuma questão latente sobre a questão racial.

Assim, Embers vai aos poucos, de forma sutil e elegante, acessando camadas delicadas do interior dessa personagem, usando outros recursos para além do mais óbvio cinema de psicologia clássica. Ao longo das diversas entrevistas feitas por Asta, ela não desenvolve qualquer reação emocional ou pessoal diante das situações relatadas. Ela apenas anota no seu caderno declarações dos depoentes, mas o filme não evidencia sua posição diante dos fatos. Dizem que os jornalistas devem desenvolver uma técnica neutra, atendo-se aos fatos relatados. Mas será isso possível quando, quem escreve as matérias, é um ser humano? Com seu estilo distanciado, poderíamos pensar que o próprio filme de Embers incorpora a perspectiva de Asta, mantendo-se imparcial diante de suas atividades, meramente descrevendo sua rotina, sem interpretação. Mas é exatamente aí que reside a delicadeza do estilo de Embers (o que nos remete à enorme diferença entre o jornalismo e o cinema): seu filme não é um mero registro da atividade de Asta, porque, como obra de criação, claramente desperta para o espectador a possibilidade de um recuo, associado a uma reflexão sobre a vida de Asta. O filme nos permite parar nossa rotina para não apenas acompanhar as tarefas da protagonista mas para nos perguntar, num sentido mais profundo, sobre o sentido de sua existência, investigar as razões que, por trás de certa normalidade, se revela uma certa angústia. Para isso, surge como fundamental estimular no espectador o papel da contemplação, por meio de planos longos, e por pequenos gestos que sugerem esse esvaziamento. A delicadeza de Embers é que esse esvaziamento não é apontado de forma grosseira, por meio de diálogos ou situações de roteiro que gritem ao espectador o estado interior da personagem. Mas apenas podemos conviver com esse certo interior a partir de uma tomada de consciência disparada pelo papel do tempo, fazendo com que essa certa crise surja de forma mais orgânica, fugindo dos esquematismos.

No entanto, em meio às suas entrevistas, de assuntos mais ou menos banais, um dos assuntos parece ter mexido de fato com Asta: é o caso de um refugiado, que acabou sendo deportado da Noruega, uma decisão questionada por Asta. Ela não o conhece, e, mesmo sua atividade pública, não provocará diferença no curso do caso. No entanto, esse caso promove um despertar de consciência em Asta. Apesar disso, essa transformação é refletida pelo filme de forma extremamente serena e discreta, como se fosse uma planta que germina dentro de seu corpo segundo o próprio ritmo da vida.

A ênfase em grandes planos gerais nos ambientes externos evidencia o deslocamento de Asta do espaço urbano da pacata cidade de Alesund, bem distante da capital Oslo. É impressionante a delicadeza de Embers em perscrutar os sutis indícios desse certo mal estar, essa necessidade do afeto e a dificuldade de obtê-la. Não há culpados, não há adversários nem conflitos diretos. Para nosso espanto, o conforto da economia não resolve tudo. Por que, num país de estável nível socioeconômico, de grande qualidade de vida, Asta se sente tão frágil? Talvez porque não há nada a se fazer, nada a se lutar, nenhum grande sonho, nenhuma grande perspectiva de mudança. O modo humano como Embers encontrou uma forma cinematográfica adequada para expressar esse paradoxo é notável.

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