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Festivais

46ª Mostra SP (2022) – “Carvão”

Entre o realismo fantástico e o realismo apropriadamente, num Brasil profundo.

Por Humberto Silva | 27.10.2022 (quinta-feira)

Carvão é um filme que gera certa expectativa. Longa debutante de Carolina Markowicz, tem como protagonista Maeve Jinkings, nome de proa entre as atrizes atuais do cinema brasileiro, foi exibido nos festivais de Toronto e San Sebastian. Neste ano de 2022 foi vencedor do CICAE (distribuidores de cinema de arte europeu) em Toulouse, França. Carolina, aliás, tem razoável trânsito no circuito internacional. Antes de Carvão, ela emplacou seis curtas em cerca de trezentos festivais – destaque para Cannes e Locarno – e foi premiada diversas vezes. O roteiro de Carvão é assinado por ela.

As filmagens foram feitas numa cidade pequena do interior de São Paulo, Jordanópolis, onde a diretora passou a infância, e trata de uma família que vive em condições humildes: retira o sustento de uma carvoaria instalada no quintal da casa em que mora. Na abertura, uma pátina exibe o cotidiano de um casal de vida dura, com um filho adolescente e o pai da protagonista na cama, muito doente. Um casal vizinho que vive nas mesmas condições se apresenta e ambos conversam sobre as dificuldades de sobrevivência.

A trama de Carvão se assenta num roteiro concebido com viradas inesperadas e um clima de mistério que ronda os personagens. Com isso, traz a mensagem do quanto as aparências podem ser assustadoramente enganosas. Após a apresentação da família, desponta um traficante argentino e sua comparsa, numa casa de campo luxuosa. Ele acerta dívidas com desafetos e precisa fugir, sair de circulação. Num arranjo que envolve o assassinato do enfermo pai da protagonista, realizado por ela mesma, o traficante passa a ocupar, em troca de uma boa grana, o quarto do morto, onde se esconde da polícia e de inimigos do mundo do crime.

Cena de “Carvão”

O dia-a-dia da casa, previsivelmente, sofre profunda alteração com a presença de um estranho. Certo. Agora, vejamos. Abordar o roteiro de um filme pode ser uma armadilha para quem escreve sobre ele. Principalmente se se tem em vista a tentativa de entender pontos soltos, obscuros, na trama. Principalmente quando se quer dar sentido ao que, pela escrita do roteiro, foi pensado para gerar ambiguidade, dubiedade de percepção. Em razão das diversas viradas, a trama de Carvão deixa muitos fios soltos em sua urdidura.

É inegável que os fios soltos foram pensados na escrita do roteiro por Carolina. Carvão retrata um “Brasil profundo”, invisível para quem vive nos grandes centros urbanos, do qual se tem notícia esparsa por meio de matérias jornalísticas caricaturais. Um Brasil, de qualquer forma, em que as bizarrices mais improváveis podem acontecer.

Voltar os olhos para o interior do país, contudo, não é propriamente novidade em nossa cinematografia. Posso aqui, de memória, lembrar um dos marcos no tema: Iracema, uma transa amazônica (1975), de Jorge Bodanzky e Orlando Senna. O dado que, por outro lado, chama a atenção no filme de Carolina é o ar de mistério e bizarrice com que enovela sua narrativa: um traficante fugitivo e violento que encontra proteção em uma família de carvoeiros.

Ora, não se trata de inverossimilhança, mas do quanto as entranhas do país é habitada por pessoas que agem num fio tênue entre o lícito, o ilícito e o dinheiro. Por esse prisma, Carvão toca em pontos cegos que nos levam a indagar sobre o quanto de sujeira é posta embaixo do tapete. Embora isso seja de conhecimento razoavelmente geral, Carolina fez um filme corajoso.

Ocorre que a trama de Carvão se indefine entre um viés provindo do realismo fantástico e o realismo apropriadamente. A narrativa tem como ponto de partida uma abordagem realista, mas no transcorrer das sequências assume feição nonsense. As viradas e os pontos soltos “surpreendentemente” retiram, para mim, a força do filme: denúncia das condições miseráveis de quem sobrevive de carvoaria.

Ao caminhar para a bizarrice, Carvão mostra que no “mundo cão”, sem leis, a corrupção e o consumo de pequenas futilidades é moeda corrente. E em decorrência dita a moral de que está nessa condição. Seguindo esse caminho, estamos a um passo de justificar argumentos da extrema direita, que vê no submundo um conluio entre marginais e o restante da população. E assim, sem separar uns e outros, proceder com violência à uma higiene social.

Por que tangencia o que aponto, e reserva um final tão surpreendente quanto absurdo, Carvão fica para mim como uma experiência corajosa, mas da qual se vê a árvore e se perde de vista a floresta. Os pontos sem nó – armadilhas para quem escreve – revelam uma armação frágil, com apelos “previsíveis”. Apelos que se tornam notáveis com as cenas homossexuais, que, como na exploração da nudez na época da pornochanchada, hoje são convenientemente exploradas. Mas, bem entendido, no caso são apenas convenientes.

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