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Festivais

38º Guadalajara (2023) – Anotações Para Um filme

Documentário chileno conjuga beleza com horror

Por Ivonete Pinto | 07.07.2023 (sexta-feira)

Anotações para um filme (Notas para una película, 2022) é  um documentário estranho. Uma estranheza que exige do espectador  atenção redobrada até entrar na sua estrutura pouco convencional e, principalmente, no seu universo antropológico desconhecido. A pouca familiaridade com a proposta do diretor chileno Ignácio Agüero é inclusive um ponto a favor, pois como espectadores, buscamos o deleite das descobertas.

Visto no Festival de Guadalajara, a produção estreou no Brasil no Festival Olhar de Cinema, de Curitiba. A curadoria do evento brasileiro, que aos poucos trilha o caminho da Mostra de São Paulo apresentando em primeira mão ao público daqui cinematografias periféricas, acerta em selecionar um documentário de invenção, que dificilmente terá janelas em outras searas nacionais (inclusive Gramado, que desde a década de 1990 mantinha uma competição latina, deixa de fazê-lo a partir deste ano).

Não é um filme fácil de ser visto, no sentido de que não é diversão escapista. 

“Anotações para um filme” mistura elementos de documentário e ficção com uma abordagem quase didática.

Trata-se da adaptação do diário escrito no final do XIX no Chile, em formato de doc-fic, que recria com atores as situações narradas no livro “10 années en Araucanie 1889-1889”, em um movimento que vai e volta no tempo. Para nos localizarmos, temos como guia o figurino dos atores, já que o cenário não muda.

O preto e branco da fotografia torna este cenário decadente da região de Aruacanía (território Mapuche)  ainda menos  propenso a ser decodificado. Com uma pesquisa básica, sabemos que “Araucanía” é o nome que foi dado pelos espanhóis, sendo que os indígenas da etnia Mapuches o consideravam pejorativo.

O diretor de Anotações para um filme,  professor de cinema na Universidade do Chile, faz um esforço quase didático para trazer o espectador para dentro da história. É ele quem abre o filme como um narrador do tempo atual, em cena, informando que o que iremos ver faz parte do diário do engenheiro belga Gustave Verniory, que o escreveu quando  veio para a região trabalhar na abertura da ferrovia. Na sequência,  o diretor dá orientações para o ator que faz o engenheiro,  o também belga Alexis Mespreuve, e amos nos aproximando do contexto da construção da ferrovia, que  trouxe progresso e destruição. 

“Notas para una película” se afasta de um entretenimento escapista.

O documentarista usa imagens de arquivo, entrevistas com os indígenas no presente e a dramatização dos fatos passados. Tudo isto seria apenas um documentário etnográfico, com vocação para a nostalgia de tempos passados, onde a economia naqueles confins era florescente.  Porém  o que vemos é a história do genocídio destes indígenas. Contada por eles mesmos, pelas anotações do engenheiro belga e pelas fotografias da época.

Talvez para os chilenos, as imagens não pareçam tão impactantes, mas para plateias distantes, geográfica e culturalmente, impressionam. Não é o caso aqui de tentar descrever o que aparece nas fotos, até porque sua força é indescritível. O olhar direto para a câmera de crianças e adultos  indígenas, desnutridos e maltrapilhos, em um inverno em que a neve da paisagem é visível,  possui uma  eloquência assombrosa. 

A montagem, que o teórico Bill Nichols chamaria de expressiva, bem contribui para este efeito  Em uma das sequências, vemos posando para a câmera fotográfica  uma família de imigrantes europeus em frente a sua casa. Todos vestidos para o inverno. O contraste está ali para chocar e para educar. No filme de  Agüero, o século XIX e a década de 2020 não são muito diferentes na aparência. Apenas que quase não sobraram indígenas, assassinados pelos europeus que ocuparam suas terras e por inanição. 

Imagens de arquivo evocam o genocídio indígena.

Estranhamente, somos tragados para o incômodo das imagens e o incômodo de partilharmos trágicas histórias de colonização e monstruosidade. Ao mesmo tempo, e paradoxalmente, é possível enxergar beleza no testemunho que o belga faz da região do povo Mapuche, como um paraíso na flora e na fauna. 

Falado em francês, espanhol e mapuche, o documentário  merece ser visto. E apesar do ritmo lento,  da estrutura nada linear e do tema pesado, é uma experiência que nos envolve por completo.

 

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