
A Hora do Mal
O terror como termômetro cultural: “A Hora do Mal” e o retrato das paranoias contemporâneas
Por Humberto Silva | 11.08.2025 (segunda-feira)

De todos os gêneros cinematográficos hollywoodianos, o terror é o mais permanente, constante, com impressionante estabilidade em sua linha de produção desde que na década de 1930 a Universal Pictures fixou suas balizas. De fato, a realização de “filmes de terror” mantém produção firme e com circulação garantida há quase um século. E nesse quase um século o gênero se diversificou, se reconfigurou e assim ampliou seu leque temático, que se modulou conforme os ventos do tempo, gerando subgêneros, novas tipologias e, na mesma medida, absorvendo ou dialogando com outros gêneros de modo sem igual na indústria de cinema (western, musical, comédia…).
Com efeito, a oferta (palavra a ser devidamente considerada além do significante…) a aficionados é abundante e para todos os “gostos”: na primeira metade deste ano, o grande lançamento e os holofotes foram postos em Pecadores (2025), de Ryan Coogler, um terror zombie com recepção crítica notavelmente impressionante e receita que satisfez positivamente o investimento da Warner Bros.; agora, o grande lançamento do ano no gênero é A Hora do Mal, dirigido por Zach Cregger e igualmente lançado pela Warner, que, com o deslumbramento com que recebido por cem por cento da crítica (vide Rotten Tomatoes), faz esquecer Pecadores…; nesse meio tempo tivemos a sequência da franquia Premonição…: Laços de Sangue, Extermínio3: A Evolução, Juntos… O sucesso, permanência, reacomodação das convenções do gênero terror são um capítulo a parte na história do cinema.

Em “A Hora do Mal”, o desaparecimento de crianças conduz a narrativa por caminhos não convencionais.
Entre as diversas configurações que um filme de terror pode ter, chama a atenção aquela na qual a oferta (além do significante, pois) exibe, além do conteúdo explícito da trama, indícios de um “estado de coisas”, de mal-estar, de um “espírito do tempo” além do que é imediatamente visível (sim, o além e seus múltiplos sentidos…). No auge da Guerra Fria, na década de 1950, terror e ficção científica se unem em Guerra dos Mundos (1953) em uma metáfora do “estado de coisas” de um momento marcado pela paranoia da ameaça comunista. A Hora do Mal, e boa parte de certo terror recente – em minha percepção superficial, pelo menos desde Corra! (2017), de Jordan Peele… –, parece trazer além… do conteúdo explícito das convenções do gênero, bem recebidas pelos fãs e crítica, algo como um “estado de coisas” que reflete um tanto de paranoias contemporâneas.
Pois bem, o mote de A Hora do mal é o desaparecimento de dezessete crianças de uma escola, de uma mesma sala de aula. A questão é: as crianças, na faixa dos nove, dez anos…, simplesmente sumiram de casa no meio da noite e não se sabe como sumiram, onde poderiam estar ou mesmo se estão vivas ou mortas. E esse evento “inexplicável” ocorreu exatamente às 2h17 da madrugada. Passam a gravitar então em torno do ocorrido a professora das crianças, sob a qual a pequena comunidade fictícia de Maybrook levanta suspeita, o diretor da escola, o pai de uma das crianças desaparecidas, um policial que tem envolvimento amoroso com a professora e um único aluno, tão misterioso quanto circunspecto, que na sala aguardava, impassível, o início da aula no dia do desaparecimento de seus colegas de classe.
A narrativa de A Hora do Mal não segue como se poderia supor, contudo, uma linha cronológica em que o desenrolar dos acontecimentos conduziria a um desfecho, digamos, convencional; não adota, igualmente, uma condução marcada por um clima de suspense, mistério, que geraria expectativa e se revelaria nas sequências finais; tampouco, como se tornou uma muleta em filmes de terror, há um plot twist para “surpreender” os espectadores. A aparição casual da tia-avó da única criança que não sumiu exibe, no meio da trama, o que está por trás do “inexplicável” desaparecimento de seus colegas de sala. O foco narrativo então, centrado inicialmente na professora e no pai de um dos alunos, que buscam explicação para o que ocorreu, passa para a tia-avó, seu sobrinho-neto e seu entorno familiar. Entre esses dois focos narrativos principais, se entrelaçam tramas paralelas (explicitamente acolhidas do estilo Magnólia (1999), de Paul Thomas Anderson), que se interconectam com os motivos e explicação para o desaparecimento das crianças.

Entre entretenimento e metáfora social, o gênero segue sendo um observatório privilegiado das ansiedades contemporâneas.
O que me parece – ou pode ser uma chave com uma premissa implícita sobre A Hora do Mal? Esse filme traz indícios da vulnerabilidade das crianças num mundo marcado pelo domínio das redes sociais, por toda sorte de atrativos que a internet dispõe em contraste, justamente, com a presumível “inocência” do mundo escolar (o que com celular uma criança faz na calada da noite, na privacidade de seu quarto, alheia ao olhar dos pais?). Mais, como a sorte das crianças – e da sociedade como um todo – pode ser abduzida por uma voz de comando com as características mais bizarras e improváveis possíveis? Se Guerra dos Mundos pôde se servir como metáfora da paranoia em torno da ameaça comunista nos anos de Guerra Fria, creio podermos indagar hoje, com A Hora do Mal, sobre ameaças provindas do isolamento das crianças nesses anos dominados pelo ciberespaço (minha filha de oito anos agora enquanto escrevo no quarto dela…).
Óbvio, A Hora do Mal, como tantos e tantos filmes de terror, se oferece como mais um entre tantos filmes de terror produzidos para entretenimento pela poderosa indústria hollywoodiana. Mas por isso, além do “significante imediato” do verbo “oferecer”, nele um quinhão como o da paranoia anticomunista em Guerra dos Mundos. E aqui um dado bem sensível que cabe realçar: paranoia, em sentido lato, é uma ilusão, um estado de medo persecutório irreal. Conquanto o pânico gere excessos, como a “caça às bruxas” nos anos 50 nos USA (o controle panóptico de celular nas escolas e pelos pais não esconde o risco de excessos paranoicos…), o confronto ideológico, a intensa atividade dos serviços de inteligência, a espionagem e a contraespionagem não deixam dúvida de que ameaças não eram frutos de imaginação. Algo similar, suponho, pode-se extrair de A Hora do Mal. Para além… do terror, o gênero cinematográfico, esse um mérito – estar sintonizado com um “estado de coisas” – que vejo nesse filme.
Obviamente, como em qualquer “leitura” de um filme, esta é tão só uma. Posso estar redondamente enganado (fruto de minhas paranoias com o mundo cibernético…) e, como entretenimento na indústria de cinema, A Hora do Mal não seja mais que diversão, como A Hora do Pesadelo (1984) e o “divertido” slasher de Wes Craven. O jogo divertido com os títulos em português, para efeito de marketing, aliás, não me parece acidente. Algo como um reboot às avessas.
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