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Entrevistas

Entrevista: Theo Angelopoulos

É a ambiguidade que dá poesia ao cinema

Por Luiz Joaquim | 03.11.2009 (terça-feira)

Todos os anos a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que encerra amanhã, traz convidados ilustres e enriquece a discussão sobre cinema. Neste ano, um destes ilustres foi o cineasta grego Theo Angelopoulos, 74 anos, que semana passada esteve em São Paulo, onde participou de uma conversa após a sessão de seu mais recente filme, “Poeira do Tempo” (2008), segunda parte de uma trilogia que discute as raízes de seu país no século 20. Dono de um estilo próprio, que contempla longos plano-sequências, com densidade e refinamento, Angelopolous utiliza-se da paisagem como poucos para falar do tempo e do estado da alma humana. Respeitado como um dos maiores ícones do cinema político e histórico no mundo, e dono de uma Palmas de Ouro em Cannes, o cineasta continua mantendo vivo seu olhar poético através do cinema, como pode ser conferido na entrevista abaixo.

Em “Vale das Sombras – Trilogia I” (2004) o foco estava na Grécia, enquanto em “A Poeira do Tempo – Trilogia II” o foco está mais na Europa…

Depois da Segunda Guerra, houve uma guerra civil na Grécia e muitas pessoas sumiram de lá. Algumas foram para o Leste Europeu, para a Rússia. O primeiro filme seguiu um pouco esse itinerário e queria mostrar a história dessas pessoas nesses outros lugares. Uma razão para o segundo filme ter maior foco na Europa era meu desejo de entender as consequências da maior aposta frustrada do século 20, que foi o socialismo. Muita gente acreditava nesse sistema social e a desilusão foi enorme. Algumas pessoas simplesmente tiraram suas vidas, outras se perderam pelo mundo. Queria pensar no mundo depois disso tudo. “A Poeira do Tempo” é uma elegia sobre as pessoas daquele sonho velho e também um filme sobre o que aconteceria dali para frente, o que aconteceria com as pessoas que acreditavam nele.

A personagem Eleni (Irene Jacob em “Poeira do Tempo” – e Alexandra Aidini em “Vale das Sombras”) veio de uma composição mítica?

Não, mas a mitologia grega está na minha bagagem cultural e naturalmente ela é incorporada, tendo grande influência no meu trabalho. Não pensei em nada de mítico, se tivesse pensando isso seria fácil de identificar nas falas. O fator a ser observado aqui é que a grande história influencia a pequena história. Eu nasci antes da Segunda Guerra e isso me influenciou em detalhes da minha vida, assim como influenciou a vida de milhões na América Latina. Essa idéia do reflexo de um grande evento definindo pequenas vidas me interessa.

Em “Poeira do Tempo” Eleni também é nome de uma personagem infantil, uma menina. A idéia é a da continuidade da história, mesmo com a morte da velha Eleni?

A idéia de usar um personagem infantil me veio depois que soube da história de uma menina de 12 anos que tentou se matar. Me perguntei, o que a levou a isso? Na Grécia, em dezembro do ano passado, estudantes revoltaram-se com mudanças no processo de seleção para entrar na universidade, e num confronto, um policial matou acidentalmente um jovem de 16 anos. Essa história também ficou na minha cabeça, fiquei pensando no contraste de um jovem que luta pela vida e outro que busca a morte. Enquanto um quer explodir o mundo para ter novos horizontes, outros querem deixar esse mundo. Usar Eleni também como um personagem infantil era sim para criar uma parábola da continuidade.

No filme “A Eternidade um Dia” vários personagens usam capas amarela de chuva. Em “Poeira do Tempo”, Eleni tem um sonho que fala de pessoas vestindo capas amarela de chuva. Por que essa recorrência?

Capas amarelas são reconhecíveis. Em “Paisagens na Neblina” também tem um garoto que usa capa amarela. A razão é, primeiro, porque tem um efeito pictórico. Mas também tem um sentido que ultrapassa o pictórico. Acho que provoca um efeito onírico e é importante não se perguntar a razão de tudo num filme. Às vezes, detalhes são inseridos inconscientemente. Eu mesmo vejo meus filmes depois e me faço algumas perguntas. Há algo que se chama ambiguidade do real em filmes. E deve sempre existir. É essa ambiguidade que dá o poder poético do filme.

Como é o seu trabalho com Eleni Karaindrou, responsável pela trilha sonora de seus filmes, que dá um tom essencial para a melancolia de suas histórias?

A sua música ajuda a compor nossas imagens. Suas melodias acabam funcionando como uma imagem de fundo. Ela, com suas composições, termina por atuar como um alter-ego do diretor. É tudo muito preciso.

O senhor faz um cinema como quase não se vê mais. No novo cinema feito hoje, com uma tecnologia nova, há um outro ritmo. Como o senhor o enxerga?

O novo cinema é mesmo o cinema da tecnologia. É ela que possibilita a capacidade de contar novas histórias hoje. Mas, independente da tecnologia, a maneira de se contar uma história nunca vai mudar. As novas gerações aproveitam as novas tecnologias e as usam sem saber que reproduzem um mesmo ritual antigo.

O conceito de “fronteira” é sempre uma constante em seus filmes. Hoje o mundo tem cada vez menos essas divisões geográficas. Algo muda em seus filmes por conta disso?

A idéia de fronteira de que falo é a entre a vida e a morte, entre as comunicações, fronteiras entre as idéias. Enfim a fronteira está em nós, em cada um individualmente. É um limite que todos nós temos. É como se alguém dissesse que até certo ponto da vida, nos podemos seguir. Mas ao chegar num determinado ponto, nossa passagem, passaporte, não desse permissão para passar. Apesar disso, sempre queremos passar essas fronteiras. No caso da comunicação, o que realmente importa é tentar ir além do que estamos limitados.

Você consegue enxergar alguma relação no seu cinema com o do russo Andrei Tarkovsky?

Conheci Tarkovsky na Itália, nos anos 1970. Eu filmava “Alexandre, O Grande” (1979). Se temos algo em comum é a nossa atitude diante do cinema. Sobre ambos fazermos longos plano-sequência e tomadas em silêncio é porque há algo de cerimonial nisso. Mas em Tarkovsky, se tem uma projeção mística, quase como a celebração de uma missa. Eu sou mais político. Andrei é mais metafísico.

O senhor podia falar sobre as sequências de sonho em seus filmes? Como as concebe?

Não sei filmar sonhos. Eu tenho a impressão que é o filme que me filma. Meus filmes pré-existem. Eu só realizo algo que já existe. É como se alguém me contasse essa história pra mim na infância e eu tivesse crescido com essas histórias, e simplesmente tenho de repassá-las. Hoje trabalho num novo roteiro de um outro autor, mas sempre encontro minha própria história nele. É como dizia um poeta grego. “Antes de nascer, a alma entra num barco e para ela sair de lá precisa usar o poder da palavra”.

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