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Festivais

50. Brasília (2017), noite 5, texto #2

Heloísa Passos tenta o diálogo para um futuro, Curvelo cria Joder, a expressão do Brasil derrotado.

Por Luiz Joaquim | 20.09.2017 (quarta-feira)

*na foto de Júnior Aragão, equipe de Construindo pontes Mamata em debate hoje (20) pela manhã, com Heloísa Passos ao microfone.

BRASILIA – O 50o Festival de Brasília do Cinema Brasileiro continua oferecendo uma programação que nos faz refletir não apenas sobre os filmes, individualmente, mas sobre o dialogo entre eles num mesmo bloco de programação, e em como isso pode amplificar o seu discurso nuclear. A noite de ontem (19), a quinta desta edição e a quarta competitiva, foi mais uma bela ilustração desta ideia. Abriu espaço para um questionamento explícito e direto sobre o Governo Federal sob o qual estamos imersos e vitimizados e como, cada um a seu modo, reage a isto.

Construindo pontes (PR, 2017), de Heloísa Passos, foi o primeiro documentário em longa-metragem a se apresentar nesta competição. Passos é mais relacionado à direção de fotografia (este a frente de filmes como Lixo extraordinário, Viajo porque preciso, volto porque te amo; O que se move) e filia-se, com este seu primeiro longa, àquelas obras em que o autor investiga a própria filiação familiar para entender-se melhor e entender também como se situa no mundo em que vive.

Neste bojo de proposição cinematográfica, Construindo pontes remete a trabalhos como 33, de Kiko Goifman (exibido no 36o Festival de Brasília, 2003), Os dias com ele (2013), de Maria Clara Escobar. Mas o que há hoje de mais irmanado com o doc. de Passos parece ser No intenso agora (2017), de João Moreira Salles (com lançamento para breve).

Ambos partem de um privado material de arquivo em cinema restaurado e colocam em questão o modo de seus genitores verem o mundo de ontem para juntos repensarmos o de hoje. João Moreira faz isso com os 16mm filmados por sua mãe na China da Revolução Cultural, anos 1960, e Heloísa Passos faz com os rolos de Super8 que marcaram sua infância quando, menina nos 1970, via as por eles as Cataratas de 7 Quedas, no Paraná; área que foi inundada por um projeto levado a cabo no governo do presidente militar – o General Ernesto Geisel -, no qual o pai da cineasta, o engenheiro Álvaro Passos, trabalhou com o objetivo de construir a usina hidrelétrica de Itaipu (1975-1982).

Aqui, um parênteses. O resgate das imagens de 7 Quedas feito pela diretora, ainda que a partir do Super8, quando mostradas na tela do Cine Brasília, envolta por um som potente da força das águas, trouxeram ao espectador a beleza disso que podemos chamar de um clichê, que é o esplendor da natureza. Fica claro o ponto de inflexão na vida daquela menina de então, a criança Heloísa, quando fazia uma das poucas viagens com o pai tendo aquele local como uma referência idílica de beleza, força e harmonia. O que podia representar a figura de um sentimento paterno para uma criança.

Corta para 2016 e temos Heloísa, 49 anos, em constante conflito com o aposentando Álvaro, 78, em diálogos inconciliáveis quando o assunto á condução da operação Lava-Jato ou a postura do juiz Sérgio Moro.

Salta bastante na tela o modo enérgico e irritadiço de como Heloísa se coloca e responde ao pai diante das opiniões dele quando Álvaro exalta os militares de sua época pela rigidez no cumprimento das metas e dos prazos como argumento de que ali havia ordem e progresso.

Com Álvaro sempre remetendo-se ao golpe militar de 1964 como “revolução” (uma referencia própria de sua geração que se preservava-se publicamente, à época, nomeando o golpe como “revolução”, fosse por simpatia ou por segurança), as suas respostas às provocações da filha vêm sempre de maneira calma e ponderada.

Neste sentido, é curioso perceber como de certa forma Álvaro “vence” a filha e “ganha” o filme e o espectador. Apoiado numa experiência de vida, numa vivência regada por realizações de grande envergadura e êxito no campo da engenharia (ou seja, da ciência e da precisão matemática), que transformou o Brasil (Itaipu alimenta até hoje os estados de São Paulo e Paraná), Álvaro é dono de uma serenidade e convicção que não permite abalar-se pela pontuações mais do que pertinentes colocadas por Heloísa.

Uma mulher que ele ajudou a criar. A mesma com a qual ele também perdeu, de certo modo, quando ela tinha cerca de 22 anos e saiu de casa por outro tipo de conflito, a de gênero sexual.

still de “Construindo Pontes”

As vitórias de Álvaro, sendo a primeira sua serenidade nas discussões, aparecem de forma mais concretas em algumas discussões mais pontuais, como a que Heloísa aborda um problema no pequeno projetor Super8 da família, ou quando ela afirma que numa certa ferrovia não circulam mais trens, enquanto seu pai avisa para ter cuidado com eles.

Logo em seguida numa das sequências mais resumitivas sobre aquelas duas pessoas, vemos um trem com talvez 80 vagões passar pelos trilhos onde estão pai e filha. Enquanto ela tenta chamar a atenção para a beleza do pôr-do-sol do outro lados dos vagões, o pai ressalta a beleza daquela estrutura da engenharia.

São dois seres procurando entender suas sincronias, como diz a própria Heloísa em narração off, em meio a um Pais em frangalhos em todos os aspectos – éticos, moral, profissional e na cidadania – refletindo assim as varias cisões com as quais estamos convivendo ao longo dos últimos quatro anos, inclusive no ambiente familiar.

Construindo pontes fica então como um registro cinematográfico instantâneo do nosso atual tempo confuso em que é preciso buscar o diálogo, ainda que seja duro, para tentarmos chegar a algum lugar de beleza, mesmo que ela seja bastante subjetivo. O importante aqui é chegar lá juntos.

 

CURTA-METRAGEM – A mesma desilusão com seu País expressa por Heloísa manifesta-se em Joder (Marcus Curvelo), protagonista de Mamata, curta-metragem de ficção, baiano, dirigido pelo próprio Curvelo que, a julgar pela sessão de ontem (19) deve levar o prêmio do público (e, por que não, o oficial de melhor filme?)

Mamata é fruto de uma inventividade e simplicidade cativante criada por Curvelo para apresentar Joder. Aquele que, como o cineasta disse no palco do Cine Brasília, só se ferra, e o contexto do País oferece um prato farto para assim construí-lo.

Carregado de muito humor, mas com uma carga semelhante ao de um filme de horror social, Joder é o personagem com o qual nos identificamos. Ele coloca num filme todas a inquietações… mais do que isso, toda nossa fragilidade, apatia e impotência diante do que se configura como a ideia de justiça no Brasil de 2017.

A coisa está tão absurda que “Jesus tá tomado Rivotril”, diz Joder pelo Skype, sobre um amigo com nome bíblico, para a namorada estudando nos EUA.

Desempregado seu unido desejo é deixar o Pais, mas nem isso consegue. Em certa medida, faz lembrar o desespero e fragilidade do jornalista Marcelo (Oduvaldo Viana Filho) em O deasfio (1965), de Paulo Cesar Saraceni, diante da impotência e apatia frente ao golpe militar de então.

Marcus Curvelo como Joder em “Mamata”

Em Mamata, porem, Curvelo nos faz rir. Nos lembra que o hino nacional que vale para esse Pais em frangalhos é o patético e deprimente cantando por Vanusa, e que a figura que poderia representar um herói nacional (ao menos pela via do esporte) é outra idiotizada, representada pela imagem de David Luiz chorando na Copa do Mundo de 2014.

Joder somos nós. É de nós mesmo que o baiano Curvelo nos faz rir enquanto choramos por dentro, pois, mesmo com o riso, é com uma sensação de derrota que saímos da sessão de Mamata.

*Jornalista viajou a convite do Festival

** Clique aqui para ler cobertura de Júlio Cavani sobre Construindo pontes no 50. Festival de Brasília.

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