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Críticas

Mar Adentro

O prisioneiro da vida

Por Luiz Joaquim | 30.08.2018 (quinta-feira)

– publicado originalmente em 18 de Fevereiro de 2005 no jornal Folha de Pernambuco

É bela a abertura de Mar adentro (Mar Adentro, Espanha, 2004). Numa tela negra, enquanto escutamos uma respiração arrítmica, uma voz feminina pede para que a harmonia retorne a partir da visualização de uma tela de cinema. Delicadamente, o paredão escuro dá espaço a uma pequena luz quadrada, que por sua vez vai alargando e começa a dar forma a uma radiante praia. Em instantes, o espectador não distingue mais o que é respiração nem barulho do mar.

Dirigido por Alejandro Amenábar, o filme engrossa a lista de produções em cartaz estampando o selo “Indicado ao Oscar de…”. Com apenas três filmes no currículo – Tesis: a morte ao vivoAbra os olhos (que deu origem a versão norte-americana Vanilla sky), e Os outros – Amenábar, 32 anos, surpreende a todos que viam nele uma espécie de garoto com o prodígio voltado para perturbar o espectador via roteiros mirabolantes e precisa concepção cinematográfica para criar clímax.

Apesar de abdicar, no novo filme, da sugestão do medo e do susto, Amenábar não abandonou um tema que lhe é caro e permeia toda sua obra: a morte. Mas agora, o assunto é tratado num patamar de reflexão. Querendo aspirar aos ares da filosofia, confrontando conceitos a respeito da liberdade e da vida. E é a partir dela, da vida em sua simplicidade, sutilezas do cotidiano e de seu humor singelo que Mar adentro busca argumentos para falar, num primeiro plano, sobre a morte.

São poucos os filmes que tratam o assunto com serenidade. Mas quando o fazem, agradam a quase todos. Haja visto o recente sucesso de crítica e público de Invasões bárbaras, que, curiosamente, foi vencedor do Oscar 2004 pelo qual Mar adentro concorre no próximo dia 27 (além do de “melhor maquiagem” também). Embora o tema da produção espanhola remeta ao da canadense, o primeiro não guarda o frescor do segundo.  

Há quem possa questionar: “como falar de frescor quando o assunto é a morte?”. A pergunta seria pertinente se o assunto que Amenábar foca aqui nas entrelinhas fosse realmente a morte. Uma vez conhecendo o cenário humano que cerca o protagonista, Ramón Sampedro (Javier Barden, de Antes do anoitecer), o espectador irá ver que é sobre diferentes formas de amor que o cineasta quer falar nas entrelinhas.

Para contar a história real do galego que ficou por 28 anos tetraplégico tentando conseguir autorização do governo espanhol o direito a eutanásia, Amenábar nós mostra um Ramón que, por depender sempre de alguém para qualquer coisa, aprendeu a “chorar com um sorriso”. Em absoluta descrença pela vida sem liberdade, que só conheceu antes do acidente que o deixou paralítico, Ramón recobra euforia apenas quando conhece Júlia (Belém Rueda).

Ela é uma advogada determinada a ajudá-lo em sua assumida causa demagógica de “morrer com dignidade” e com quem divide anseios intelectuais e concepções iguais sobre “viver no inferno”. Ao mesmo tempo, Ramón conquista Rosa (Lola Dueñas, de Fale com ela), uma admiradora que lhe oferece (e busca nele) um amor protetor.

Na relação com a família, fica explícito o amor paternal de Ramón pelo sobrinho, a cumplicidade maternal que recebe da cunhada, e o vigor do amor fraterna do irmão mais velho. Sem falar no cuidado que desprende, natural em um bom filho, para poupar seu velho pai de qualquer tipo de dor.  

Javier Barden recebeu um desafio e tanto. Expressar dor, medo, desespero, alegria e humor apenas com a cabeça. Pela sua competência, recebeu troféus do Globo de Ouro e do Goya, entre outros. Mas o comportamento constante e sentimentalmente frio de Ramón, determinada pelo roteiro de Amenábar, faz de Mar adentro uma obra mais reflexiva que emotiva (ao contrário de Ondas do destino, de Lars Von Trier, também sobre um paraplégico). Mas, independente do mérito ou demérito que isso possa significar, Amenábar fez um filme, antes de tudo, corajoso.

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