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Críticas

A Árvore dos Frutos Selvagens

Gigantes crescem diante de nossos olhos. Basta sabermos enxergar, e Nuri Bilge Ceylan é um que engrandece

Por Luiz Joaquim | 24.12.2018 (segunda-feira)

Quem trabalha, estuda ou escreve sobre cinema já se perguntou alguma vez na vida como seria viver na época em que nomes como Tarkovski, Bergman ou Fellini – só para ficar em três gigantes que intrigaram (intrigam) a todos – trabalhavam no auge de sua vida criativa. É uma questão divertida. Entretanto, mais valiosa do que essa indagação é ficar atento ao nosso próprio tempo, pois podemos ser testemunhas do crescimento de outros gigantes, no nosso agora.

Um nome que deve ser observado de perto a cada novo lançamento é o do turco Nuri Bilge Ceylan. Com 60 anos completos no próximo 29 de janeiro, este senhor, que nos anos 1980 quase tornou-se um engenheiro elétrico na Turquia, hoje já é possuidor de mais 47 prêmios como cineasta, sendo 23 internacionais – incluindo a famigerada Palma de Ouro de Cannes, pelo filme Sono de inverno (Winter Sleep, 2014), tendo também recebido o Grande Prêmio do Júri pelo seu trabalho anterior, Era uma vez na Anatólia (2011); tudo isso, e muito mais, fez de Ceylan o realizador turco mais premiado de seu país.

Não que queiramos comparar Ceylan a Tarkovski, Bergman ou Fellini. Não. Por favor. Comparações são estúpidas. Sempre. O que queremos é destacar que a cada novo longa-metragem seu que vem ao mundo (e hoje eles somam oito), temos uma espécie de diamante a ser apreciado em todas as suas ricas nuances de brilho, clareza e luminosidade.

No caso de A árvore dos frutos selvagens (Ahlat Agaci, Tur./Fra./Ale./Bul., 2018) – que a distribuidora Fênix em breve vai disponibilizar aos cinemas brasileiros – não é diferente. Tendo deixado muitos críticos indignados com o júri de Cannes 2018 por não o ter contemplado em nenhuma categoria, o filme trabalha pelo menos cinco questões infinitas fáceis de serem contempladas em seu enredo.

Uma diz respeito à relação familiar (particularmente entre pai e filho); outra diz respeito ao encantamento entre um homem e uma mulher; mais uma a respeito do conflito entre a arte, o mercado e o próprio artista; a quarta a respeito da fé e da religião; e, a maior de todas, a respeito das razões de continuar ou não continuar acreditando na vida – aqui como uma espécie de conclusão que reúne todas as questões anteriores.

É audacioso? Sim. É exitoso? Sim, na verdade é mais do que exitoso. Possui problemas? Talvez, quando desenvolve incertezas sobre a religião em longos planos de uma caminhada entre o protagonista Sinan (Dogu Demirkol) em conversa com seus jovens amigos Imãs (autoridades religiosas do Islamismo).

Na sequência de extenso diálogo, o grupo põe em perspectiva o Alcorão em contraste com a evolução social humana no mundo. São ricos os diálogos e muito delicados se consideramos sua origem criativa. Mas há aqui uma quase abstração do tema, que fica fora do interesse que temos pelo protagonista, se avaliamos a partir da maneira como Ceylan introduz as outras quatro questões acima citadas.

No roteiro de Ceylan (co-assinado com sua esposa Ebru Ceylan e com Akin Aksu, este interpretando o Imã Veysel em A árvore…), o foco sobre o que há de inefável quando um homem se encanta por uma mulher é aquele com o menor número de diálogos.

É quando Ceylan trabalha no seu filme, em meio aos 183 minutos de duração, seu maior exercício de cinematografia; mas não sem antes inserir muito bem o espectador ao ambiente que será tão lindamente fecundado pelo tal encantamento de Sinan por Hatice (a linda Hazar Ergüçlü), e que fatalmente irá resvalar em qualquer espectador minimamente atento ao que se desenvolve ali na sua frente.

Enquanto Sinan é um recém-formado em pedagogia que estudou na capital e volta a Çanakkale, sua pequena cidade natal (a seis horas de ônibus, ao sul de Istambul), Hatice é sua amiga de infância que nunca saiu do interior, tendo desistido dos estudos no ensino médio.

Caminhando para casa, cabisbaixo e taciturno, Sinan escuta alguém chamar pelo seu nome. É a voz de Hatice que está próxima a um poço onde foi buscar água. Após breve conversa na qual ambos (e nós espectadores) nos inteiramos dos últimos anos de vida dos dois, a tristeza mesclada com indignação pela sua condição feminina, e que marcam sutilmente a fala e o rosto de Hatice, hipnotizam Sinan.

Até ali, o jovem estava distraído com sua própria frustração por ter voltado a Çanakkale, mas o inefável acontece e as solução cinematográficas dadas por Ceylan são, literalmente, de arrepiar. Sem diálogo e por uma combinação de planos em que a eloquência do vento nas folhas, no cabelo de Hatice e tomando forma e som em todo aquele espaço bucólico funciona como uma incrível tradução audiovisual para o início do encantamento amoroso.

Numa construção narrativa impecável, Ceylan nos dá esse tesouro espertamente após a fala entristecida de Hatice, lamentando o quanto que há de beleza simples no mundo mas que ela não pode usufruir pela sua condição de mulher prometida pela família a um homem rico. É devastador e apaixonante.

Já o conflito entre a arte, o artista e o mercado surge do encontro inesperado entre o aspirante a escritor Sinan e Suleyman (Serkan Keskin), o mais renomado romancista daquela pequena cidade turca.

O que inicia com uma pergunta simples feita pelo aspirante escritor ao veterano escritor, sobre como o próprio artista se enxerga e como ele se vende para o mercado, torna-se uma conversa de crescente tensão sobre a autenticidade da arte, incluindo citações a Tchekhov, Dostoievski e Nietzsche.

Os resultados dessa conversa – quase uma batalha de argumentos, na verdade – acaba por reforçar aquilo que está espalhado por todo o filme a respeito da personalidade de Sinan. Tem a ver com a natural arrogância juvenil. Aquela que procura respostas definitivas para perguntas que necessariamente não devem ser respondidas.

“O que você não sabe, meu jovem” – berra Suleyman para Sinan, já não mais suportando o embate – “é que não há uma única verdade!”.

A arrogância de Sinan passa pelo desprezo pela sua cidade, ainda que ela seja o objeto do manuscrito que tenta publicar como um livro; passa pelo desprezo por Idris (Murat Cemcir), seu pai, viciado em apostar em corridas de cavalos e inventar maneiras de ganhar dinheiro em projetos falidos; e passa, logicamente, pela maneira como percebe a estrutura do mercado cultural.

Entre tantos tocantes momentos, sempre pontuado pela austeridade de Bach em Passacaglia & Fugue em C menor, BWV 582, A árvore…  nos mostra o filho, um tantinho mais maduro, se aproximando do pai, mais envelhecido, solitário e, ainda assim, bem humorado. O contraste aqui será entre a natureza de um e do outro. Enquanto a do primeiro é a de questionar tudo na vida e precisar arcar com as consequências desse peso que carrega, o do segundo é de seguir adiante com seus projetos malucos e ter a humildade de reconhecê-los malucos quando for o caso.

Para tanto, mais uma vez, Ceylan tira o nosso fôlego dando duas opções de final para A árvore…, deixando ao nosso gosto escolhermos no que acreditar. Escolher quem somos. Se Sinan ou Idris.

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