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Críticas

Desyrrê

“Acostume!”, diz Desyrrê, tranquila, para quem ainda não entendeu que ela pode.

Por Luiz Joaquim | 19.12.2018 (quarta-feira)

O primeiro registro valioso aqui diz respeito ao fato de não apenas termos dois curtas-metragens realizados no município de Triunfo, Sertão do Pajeú pernambucano, concorrendo no 20º Festicine, mas também pelo fato de ambos terem sido premiados na Competição em Formação. Enquanto a realização coletiva #Turismo_Selvagem levou o título de melhor animação, Desyrrê, um trabalho também coletivo, levou para o interior do Estado o troféu de melhor documentário na mesma competitiva. É como se ambos dissessem, “prestem atenção aos talentos fora do âmbito urbano de Pernambuco”.

Nesse sentido, a personagem que dá título a Desyrrê, o filme, é também uma vencedora. E isto apenas pelo fato de existir – sendo este fato um já ato também de resistir. Desyrrê, a protagonista, é uma mulher trans, negra, vivendo numa pequena cidade interiorana, lugar onde pode ser alta a probabilidade de sua população alimentar uma lógica conservadora no que diz respeito ao comportamento sexual de seus habitantes.

E, sendo assim, como seria a vida de Desyrrê em Triunfo? O filme nos serve como uma introdução da resposta para essa pergunta. E desde sua abertura – com a voz em off da protagonista sobre um fundo preto avisando: “acostume!”, para aqueles que se espantam com seu hábito de pilotar sua moto de salto alto –, já entendemos de imediato que temos aqui um exemplo de determinação. De uma pessoa que quebra regras constantemente para poder ser quem é.

Em sua apresentação, antes da projeção no cine São Luiz (Recife), Desyrrê avisou “não sou de falar muito”, e a equipe que produziu o filme soube aproveitar bem essa espécie de ‘timidez despachada’ da personagem.

Sobre a equipe do filme, o que temos é um outro coletivo que desenvolveu aqui um trabalho ao final da oficina ministrada pelo realizador Marlon Meirelles, dentro do projeto Eixo Audiovisual, patrocinado pelo Funcultura Audiovisual do Governo de Pernambuco.

Voltando à nossa heroína dentro de seu filme, é fácil verificar que a objetividade estética do segundo é o que há de mais honesto para retratar a primeira. Acompanhar o cotidiano de Desyrrê na casa humilde, preparando o café da manhã, ou no trajeto para a faculdade de ônibus, ou trabalhando na cozinha de um restaurante sem glamourizar nada disso é o que nos aproxima da protagonista.

E se consideramos que a identificação é a ferramenta mais eficaz para desconstruir preconceitos, Desyrrê, o filme, acerta em cheio na estratégia de apresentação dessa moça que também tem respeito pela Igreja Católica.

Como ela própria conta, ir a Igreja, que começou como um refúgio para se sentir protegida em função do preconceito que sofria desde a juventude, acabou sendo também o lugar que a despertou para a sexualidade com um outro homem. Na vida, Desyrrê conta que a figura de seu pai – também contrariando expectativas preconceituosas – foi a que entendia a condição do filho que se sentia filha. Em depoimento, a personagem diz claramente, e séria, que a mãe e os irmãos são homofóbicos.

Entre um depoimento e outro, temos o que podemos chamar de performances de Desyrrê. Não artística, mas da personalidade, de estilo de vida que ela criou para si; com isto passando pela simples e legítima vaidade de ser uma mulher.

Estes são os momentos de respiro que a narrativa do filme nos oferece – dentro de uma vida dura -, e que também nos aproxima de um outro lado de Desyrrê. O da alegria e o do regozijo dela ser quem é, e se sentir quem é. Seja quando desfila ‘montada’ e no salto por uma trilha pedregosa e bucólica, enquanto a câmera a acompanha de perto; seja no encerramento do filme, quando ela dança na noite, devidamente vestida para uma festa, e tendo ao fundo o famoso açude João Barbosa Sitônio.

É como se Desyrrê fosse parte integrante da paisagem. Como se Desyrrê fosse Triunfo, e Triunfo fosse Desyrrê. O que significa, em outras palavras, algo para que o Oásis do Sertão se sinta orgulhoso de si próprio.

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