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Festivais

22a. Tiradentes (2019) – “Tragam-me a cabeça…”

A angústia e a exasperação de uma atriz pelo resgate da essência de uma cultura

Por Luiz Joaquim | 21.01.2019 (segunda-feira)

Na foto, a força da natureza portuguesa, Catarina Wallenstein em cena de Tragam-me a cabeça de Carmen M.

TIRADENTES (MG) – Já já começa um dos mais importantes festivais de cinema do mundo, nos Países Baixos: a 48ª edição do Festival Internacional de Cinema de Roterdã (IFFR, na sigla em inglês). Inicia próxima quarta-feira (23) e, dois dias depois, Roterdã apresentará ao mundo o novo filme de Fellipe Bragança, Tragam-me a cabeça de Carmen M., codirigido pela portuguesa Catarina Wallenstein (também protagonista do filme). Lá exibirá no programa “Bright Future – Mid-Lenght”  (futuro brilhante, média-metragem).

No Brasil, o conhecemos ontem (20), por aqui, em sessão do programa “Olhos Livres”. Alternando-se entre as cores fortes e o preto & branco, e construído sob uma forma bastante livre de conduzir o trajeto da protagonista Ana (Wallenstein), Tragam-me a cabeça… se propõe a estimular pensarmos no resgate de uma “linguagem” – conforme a fala de Bragança em debate hoje (21) pela manhã – para o Brasil de agora a partir do que significou o papel, digamos, de contraventora cultural que foi construído por Carmen Miranda (1909-1955) em seu tempo.

Também em sua fala, o realizador deixou claro a força das determinações que a artista precisou estabelecer na sua época para conseguir levar adiante um projeto de impor, pela sua arte, o seu gosto pela música popular, aquela que nasceu no morro, revelando a beleza do samba e o colocando-o num lugar difícil de imaginá-lo nos anos 1930; a começar pelo espaço restrito da elite brasileira e depois chegando a Hollywood.

Aquilo foi um ato político, pela expressão cultural. “Ela começou a cantar música de negro em salões nobres”, disse Bragança, e foi taxativo em sua leitura: “Sem Carmen, não escutaríamos samba como escutamos hoje”.

Ainda que tal princípio seja pertinente e valioso nesse momento do País que, conforme salientou Bragança,  “vive um simplismo da extrema-direita”, durante o debate o CinemaEscrito colocou uma questão a partir desse pressuposto.

Qual seria o cuidado que deveríamos ter ao suscitarmos essa “linguagem” para o presente, tendo o exemplo de Carmen Miranda, quando ela própria, a certa altura, sucumbiu a uma estrutura superior de distorção cultural?

Não houve uma reposta que Bragança conseguisse encontrar para a provocação, mas ele deixou claro que o desafio aqui é “pensar na resistência contra esse vendaval de puritanismo no poder, e quais caminhos a linguagem da fala e do corpo podem ser usados”.

O FILME – Também veio de alguém na plateia, no debate pela manhã, que ela (a pessoa) não conseguia ver no filme a premissa explanada por Bragança. Não nos parece exatamente um problema que a premissa não esteja explícita no filme. Na verdade, isso – neste caso especifico – pode ser um trunfo, uma vez que Tragam-me a cabeça… poderá arregaçar leituras das mais variadas, engajadas ou não (ou mesmo não arregaçar).

O fato é que Tragam-me a cabeça…, numa leitura inicial, apresenta a força da natureza portuguesa chamada Catarina Wallenstein (a Luísa do maravilhoso Singularidades de uma rapariga loura, do Manoel de Oliveira). Parece unânime em Tiradentes que a presença de Wallenstein empresta alguma verdade que está além do que é fácil de explicável no campo da criação.

Talvez nos ajude a entender isso a combinação da beleza física da atriz unida ao extremo talento performático e musical, além do estranhamento de sua Ana ser uma europeia branca tentando (com força) chegar ao âmago do que foi Carmen Miranda/é o Brasil de hoje – sendo Carmen ela própria uma bela europeia branca que conseguiu estabelecer esse “impossível” no passado.

Some-se a isto o objetivo mais superficial de Ana, dentro do enredo, que é desenvolver um personagem para um longa-metragem, em processo de ensaio realizado por uma espécie de entidade (vivido por Helena Ignez). Sendo essa busca de Ana pela essência de sua personagem/do Brasil algo angustiante e exasperante, mas necessário, pois há um trabalho a cumprir aqui.

Seria essa entidade, na pele de Ignez, uma representação da arte em si, aqui mediando Ana (nós) num processo de formação do qual não devemos nos esquecer?

Por fim (por enquanto), o registro em imagens em Tragam-me a cabeça… das chamas que tomaram o Museu Nacional em setembro do ano passado servem aqui como uma das sínteses visuais mais precisa e triste do que significam os descaminhos para aonde vai a cultural brasileira sob o domínio do governo de então e o atual. Para as chamas. Para o pó.

*Viagem a convite da Mostra.

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