X

0 Comentários

Críticas

Festival de férias (inverno) 2019

Eustache, Coppola, Dreyer, Biáfora, Homem-aranha, Gomes, Mônica, Mascaro, Dunaway, Ceylan. Tudo é cinema

Por Luiz Joaquim | 25.07.2019 (quinta-feira)

Em 2019 (e antes disso), qualquer um pode ser o curador cinematográfico de si próprio. Neste pequeno intervalo do ano em que o oxigênio pôde ser respirado, chamado por muitos de férias, selecionamos alguns títulos para ver e rever, e fomos a outros que o mercado selecionou por nós, pondo-os na nossa frente para tentarmos encará-los.

Resolvemos discorrer aqui breves sínteses comentadas de cada um destes filmes, sem ordem de importância, sem apelo jornalisticamente pautado pelo real, sem preocupação com a pressa da agenda cultural vigente.

É algo próximo ao que alguns pouquíssimos festivais de cinema conseguem fazer. Uma espécie de desierarquização [se essa palavra existisse, aqui estaria uma empregabilidade] dos filmes, dentro de uma seleção.

Links estéticos ou temáticos entre eles não são necessariamente contemplados aqui, ao contrário do que se estabeleceu a partir das primeiras experiências por esse caminho feitas por Henri Langlois na Cinemateca Francesa (CF) dos 1950s.

Poucos curadores optam por um outro caminho também trilhado pelo pai da CF, o do atrito. O do contraste, o da oposição. Da discrepância entre obras para salientá-las individualmente, e não desenhando uma programação como se fosse apenas um único filme a ser projetado. Com uma única ordem discursiva e emotiva sintonizadas, se retroalimentando afetuosamente.

Afeto, a propósito, deve ter sido, com pouco margem de erro, a palavra mais empregada no Brasil ao se referir a filmes nesta segunda década do século 21. O que nos parece é que se impôs uma sobrecarga torcida e retorcida de significados à palavra para validar o que não precisa de validação.

O desafeto – já usando de forma direta a palavra oficial de oposição ao afeto no nosso léxico – nos parece tão vital quanto.

Mas, retomando à intenção desse texto, as análises abaixo não tentam dar conta de afeto ou desafeto, não tentam validar nem desvalidar filmes. Não pretendem convencer ou inibir. São apenas palavras escritas em estado febril (literalmente) digitadas pelo editor deste site.

Aproveitem. Ou não.

A mãe e a puta (La mamam et la putain, 1973), de Jean Eustache

Clássico pouco celebrado no Brasil deste documentarista, Eustache, que conduz aqui em espírito ficcional, mas com corpo documental, um momento rico e muito curioso sobre a Paris e os parisienses de 1973, ou seja, a obra é algo criado e lançado cinco anos após a bomba sociocultural de 1968. Funciona como um retrato de uma grande ressaca de uma juventude que começa a encarar a face incontornável do amadurecimento pessoal. Duro, direto e longo (são 217 verborrágicos minutos), A mãe e a puta desenha esse retrato a partir do dândi Jean-Pierre Léaud (nosso eterno Antoine Doinel), como Alexandre. Ele é um sedutor, anarquista que mora de favor com a amiga Marie (Bernadette Lafont). Marie é mais que uma amiga, ela divide seu amor com Alexandre enquanto este, apesar de libertário e também se envolver com Veronika (Françoise Lebrun), não admite dividir Marie com outro homem. Em 1973, Alexandre seria chamado de chauvinista. Em 2019 ele pode ser explicitamente apontado como machista (com razão). Talvez com mais 46 anos (em 2065) sua postura receba outra nomenclatura. Independente dela, Alexandre está ali para representar o passado. O futuro (na verdade o passado, a história, travestida de ‘futuro’) é o pensamento puro, simples e fácil de Veronika, que chora para explicar (à câmera, a nós) que uma mulher querer “foder” com muitos homens não faz dela uma puta. “Não existem putas no mundo”, ela tenta explicar, aos prantos. E que o sexo não tem importância, a não ser quando se faz com quem se ama. Sobre essa última assertiva, que pode ser lida aqui como pudica, não terá nunca essa leitura para aqueles que vierem a conhecer Veronika em A mãe e a puta. Filme ganhou o Grande Prêmio do Júri e o Prêmio da Crítica no Festiva de Cannes 1973.

A conversação (The conversation, 1974), de Francis Ford Coppola.

Aquele filme de Coppola que sempre se referirão como a versão tecnicamente sonora para Blow-up: Depois daquele beijo (1966), de Antonioni [assim como Um tiro na noite, 1981, de Brian de Palma). Mas A conversação é muito mais do que como lhe vendem e, a propósito, a ideia que deu origem ao roteiro escrito por Coppola é anterior ao lançamento de Blow-up. Após a apoteose filmo-filosófica chamada O poderoso chefão, lançado dois anos antes, o seu pai poderia fazer o que quisesse, e fez um filme sobre um homem solitário (assim como o é seu Corleone). N’A conversação temos Harry Caul (Gene Hackman) e sua pretensa ideia de segurança ao não se envolver com a mulher que ama e não revelar seus segredos de investigador aos amigos ou concorrentes. O disparador da trama passa pela sua suspeita de um futuro crime a partir de uma fala que Harry capta, a distância, da conversa de um casal sobre o qual foi contratado para espionar. Protegido pelo anonimato, tendo de ouvir atentamente à intimidade de estranhos, o católico Harry vive uma crise existência, e Coppola inverte a situação colocando-o. a certa altura, no papel de espionado. Duas sequências antológicas marcam as pontas do filme. Na abertura, o zoom sobre uma praça qualquer repleta de gente a vontade, fazendo da sequência algo banal se não fosse pelo o que a banda sonora do filme vai nos informando;  e a sequência de encerramento, com Harry enlouquecido em sua própria casa, revirando-a para encontrar um pretenso grampo que ali teriam pregado. A imagem da casa destruída é a imagem interna do espírito desse homem solitário e agora entendedor que ele não é tão especial em sua fé. No Brasil de 2019, a imagem da casa esburacada talvez possa ilustrar também como está a mente de um ex-juiz brasileiro que também feriu com um grampo telefônico e agora está sendo ferido pelo mesmo expediente. A conversação é a Palma de Ouro de Cannes 1974.

A palavra (Ordet, 1955), de Carl Theodor Dreyer.

Dreyer (ainda mais) maduro. O dinamarquês que já havia revolucionado o cinema com o cutâneo e poroso O martírio de Joana D’Arc (1928), e dado também O vampiro (1932) e Dias de Ira (1943), finalmente voltou, nos anos 1950, ao A palavra, um projeto que lhe era caro há décadas, concebendo então mais uma obra que desce fundo no espectador e o enverga em suas convicções (sejam elas quais forem) pela simples força da criação artística. Pode não haver fé religiosa no espectador de Dreyer, mas sendo um espectador de Dreyer, ele terá fé na arte e, portanto, será afetado pelo seu filme.  E sempre muito difícil e injusto reduzir um Dreyer em poucas palavras, mas, em síntese, n’A palavra estamos nos anos 1920 com uma família de fazendeiros, os Borgen, luteranos, cujo patriarca viúvo, proeminente em sua comunidade, vive com três filhos e a nora grávida, Inger (Birgite Federspiel), casada com o mais velho, o agnóstico “de bom coração” Mikkel (Emil Hass Christensen). O terceiro e mais jovem filho, Anders (Cay Kristiansen), deseja casar com a filha do alfaiate e pastor Peter (Ejner Federspiel); este também cristão, mas de outra igreja, ortodoxa, punitiva. A distinção da percepção do que é a fé e de como ela opera distintamente para estes dois patriarcas define os conflitos aqui. Há, porém, a figura fantasmagórica de Johannes (Preben Lerdorff Rye), que transita como um louco entre os dois mundos, num constante transe, pregando para ninguém e enxergando a morte invisível, personificada num ceifador. Johannes diz que é Jesus Cristo reencarnado num mundo onde “milagres não mais existem” – convicção defendida inclusive pelo novo pastor da paróquia e colocada também jocosamente pelo médico cético, que pensa ter driblado a morte de uma paciente. Dreyer, como em todos os seus filmes, parece nos transportar para um universo paralelo, e cria pela nuançada fotografia de Henning Bendtsen, em rigorosa sintonia com a performance de seus atores, quadros em movimentos de humanos em sua pequenez. Dreyer nos dá a dimensão de quem somos. A de crianças tateando ideologias como tábua de salvação enquanto verdades desfilam diante de nós. O cineasta usa a religião e a fé para fazer suas demonstrações. E trabalhar com estes dois elementos dando-lhes a dimensão do sagrado não é para amadores.

O quarto (1968), de Rubem Biáfora.

Um daqueles filmes brasileiros injustamente apagado pelo Cinema Novo nos 1960 por ser considerado “alienado” (apesar de Glauber Rocha ter enviado uma carta elogiosa ao Biáfora sobre seu filme). Era o segundo filme dirigido por Biáfora, mais experiente como roteirista. Depois de assinar Ravina (1958), sob o esteio da Vera Cruz, o crítico e escritor apresentou dez anos depois esta outra obra mais intimista, que deve muito ao seu protagonista Sérgio Hingst neste que é, provavelmente, o esforço mais denso de sua carreira. Ele é Martinho, funcionário público, prestes a fazer 40 anos, vivendo sozinho e solitariamente num pequeno quarto de aluguel. Na repartição pública é explorado pelos colegas; no campo da saúde sofre com a crescente perda da visão; enquanto passa a noite com prostitutas que busca pelas vielas paulistanas. Em visita a irmã, casada e mãe de dois filhos, Martinho recebe a cobrança de sempre, de que está na hora de “arrumar uma boa moça” para casar. A vida de Martinho é claustrofóbica e Biáfora nos dá essa dimensão já na abertura, com os planos do alto do pequeno quarto do anti-herói. A trilha-sonora de Rubens Barsotti, Luiz Chaves e Amilton Godoy, de melodia quebradiça, lembra o melhor do concretismo de Rogério Duprat, emprestando ainda mais incômodo ao que vamos conhecendo do protagonista. Mas tudo muda (ou parece mudar) quando Martinho conhece uma grã-fina liberal (para ficarmos na expressão da época) por quem se apaixona. Sua autoestima cresce, ele começa a enfrentar seus monstros pessoais, mas sua indissociável origem social põem tudo a perder. Biáfora é mau com seu personagem. Não o poupa em sua pequenez. É uma história difícil a respeito de vários ‘Martinhos’ que conhecemos. O quarto poderia estar numa lista forte de filmes sobre homens maduros solitários, incluindo aí pérolas esquecidas, como Viagem aos seios de Duília (1965), de Christensen, ou celebrados como A conversação (1974), de Coppola.

Homem-aranha: Longe de casa (Spider-man: Far from home, 2019), de Jon Watts

Quem ‘zapeasse’ pelos canais abertos de televisão no início da tarde do domingo 7 de julho último, e parasse no Programa de Família, apresentado por Márcio Garcia, teria visto um cantor chamado Ferrugem usando um equipamento de realidade virtual pelo qual ele, Ferrugem, se percebia dentro de um balão, tendo de aterrissar dentro de um vulcão e depois ultrapassar uma viela sobre lava ardente para alcançar seu objetivo. Em um dos “grandes momentos” (sic) de Homem-aranha: Longe de casa o herói aracnídeo (Tom Holland) passa por algo semelhante, sob o efeito da realidade virtual. No caso ele precisa vencer seu opositor, Mysterio (Jake Gyllenhaal), que muda o ambiente, sua forma e qualquer outra coisa que a imaginação possa criar. É pobre, portanto, o apelo que este Longe de casa tenta empenhar aos seus espectadores. Vamos além afirmando: beira à mediocridade este novo filme da franquia. Se ele tem sido celebrado em alguma esfera é bom atentar que isto acontece pelo o que o herói não tem de heroico. As boas vibrações em torno do protagonista estão nas desventuras e atrapalho amorosos de Peter Parker, apaixonado pela coleguinha MJ (a afro-americana Zendaya). Longe de casa leva mesmo o destino do Aranha para bem longe do que se entende como original. Até a tia May, na pele da eternamente bela e talentosa Marisa Tomei, ganha nova vida amorosa no novo título. Se há algo interessante nesse universo, não o dos filmes mas dos bastidores deles, é Jon Favreau (aqui atuando na pele de Happy Hogan), que surgiu nos filmes alternativo norte-americanos lá nos 1990s (Notas do subterrâneo, 1995) para virar um poderoso produtor, ator e diretor do mundo dos nerds. Alguém precisar fazer uma longa entrevista com Favreau.

Estou me guardando para quando o carnaval chegar (2019), de Marcelo Gomes.

A sensação que Gomes empresta para quem vê este Estou me guardando para quando o carnaval chegar é a de que estamos no sertão. É a de que conhecemos aquelas pessoas que seu documentário apresenta. É a de que queremos mais deles.  É a de que nos reconhecemos, em alguma medida, neles. Não há muitos elogios para se fazer a um documentário além disso. Mas para Carnaval cabem alguns outros. Desde a abertura – não a da tela negra com a voz em off de Gomes narrando como era o Sertão Nordestino da sua infância, pela sua memória (que já é bonito), mas a abertura das figuras em close que estampam os outdoors próximo ao município de Toritama, região onde o documentário se dedica. Em movimento delicado da câmera de Pedro Andrade, Gomes nos revela que aqueles rostos dos(as) modelos nos outdoors revelam-se, por trás, na verdade, uma estrutura de ferro, madeira e papel. São falsas, portanto, aquelas imagens. Assim como são falsas as ideias de liberdade do povo de Toritama, que é empregado de si próprio, mas parecem não perceberem que são escravos de si próprios, tendo como único refúgio o carnaval longe dali; fugidos, para uma praia. No meio de tantos rostos e experiência, Gomes elegeu uma espécie de poeta bruto, o trabalhador Leo, apelidado de ‘Trabalho’ com sobrenome ‘Hora-extra’, para que nós, espectadores, seguíssemos o destino daquela população e para, quem sabe, imaginarmos como eles seriam lindos em seu potencial sensível se não fossem esmagados pelo corrida capitalista do fabrico do jeans como modo de sobrevivência.

Turma da Mônica: Laços (2019), de Daniel Rezende.

Que bela homenagem é este filme, feita aos quatro amiguinhos de diversas gerações do Brasil. As crias de Maurício de Souza surgem aqui, sob a mão firme de Daniel Rezende, de maneira sóbria, elegante e conquistadora. Sobressai-se o quão forte é a persona criada há cerca de 50 anos por Souza para as quatro crianças-personagens e como elas podem ser bem aproveitadas ainda hoje, na confusa 2ª década do século 21, sem perder as características que lhes fundamentaram. Mônica (Giulia Benitte), a baixinha gorducha e dentuça (que ela não nos ouça), forte e dona de uma autoridade que assusta qualquer moleque; Cebolinha (Kevin Vechiatto), trocando os ‘r’ pelos ‘l’ (truque eternamente divertido na persona do menino); Cascão (Gabriel Moreira) e sua ojeriza à água e a Magali (Laura Rauseo) com sua fome infinita. Além da performance cativante dos quatro atores mirins, destaque para a direção de arte de Mariana Falvo, criando em ambientes reais o idílico das paisagens que ilustravam os gibis da Turma da Mônica. Há ainda uma participação especialíssima (e um tanto esquisita) de Rodrigo Santoro como o ‘Louco’, numa floresta de meter medo. A propósito, é de se destacar como um enredo tão simples – o quarteto precisa se unir para ir encontrar Floquinho, o cachorro de Cebolinha, numa floresta. O bichinho foi sequestrado por um malvado ladrão de cães – consegue envolver até mais que uma aventura milionário hollywoodiana com um aracnídeo na Europa brigando contra drones. Daniel Rezende e equipe merecem muitos parabéns pelo desafio vencido e superado. Há apenas uma observação. A relação da idade entre os personagens dos quadrinhos indicava crianças mais novas, ali pelos sete anos, e não aqueles entre dez e 12 como sugere o filme. Compreende-se, entretanto, que com atores ainda mais jovens a produção seria bem mais complexa do ponto de vista da dramatização.

Divino Amor (2019), de Gabriel Mascaro

Dez anos, e seu sétimo longa-metragem (sexto solo). Repetindo. Dez anos, sete longas. E são todos filmes no mínimo curiosos, quando não geniais. Este é Gabriel Mascaro. Um cineasta que merece sempre atenção. E na chegada aos cinemas do Brasil de Divino amor as atenções não poderiam ser pequenas. O filme passou por Berlim, Bucareste, Miami, Sundance e saiu vencedor de Guadalajara e, recentemente, de Durban (África do Sul). Ainda que não houvesse nada desse oba-oba de festivais, a própria ideia criada a oito mãos por Mascaro, Rachel Daisy Ellis (também produtora), Esdras Bezerra e Lucas Paraizo, já seria motivo de, no mínimo, curiosidade. O enredo nos leva a um futuro próximo no qual a festa mais popular do Brasil não é mais o carnaval mas sim aquelas fundamentadas no conceito do ‘supremo amor’, espécie de cristianismo fundamentalista que prega fidelidade relativizada (“quem ama, compartilha”). No centro disso tudo está Joana (Dira Paes, em performance incrível), uma burocrata, tabeliã num cartório público, que estimula casais, interessados em divorciar-se, para que permaneçam juntos. Um caminho é conhecerem a palavra do ‘Divino Amor’, entre outras práticas. Sexuais inclusas. Nesse sentido, temos cenas muito bem realizadas, colocando Mascaro como um dos melhores que dirige cenas de sexo encenado no Brasil. E isto não é pouco. Há uma voz infantil, em off, que conduz as informações em todo Divino Amor. Não é uma voz agradável ou fácil de acompanha-la. O sentido de sua aplicação se resolve ao final do filme (um belo final), mas ainda assim ela parece distrair mais que agregar. Entre tantos pontos tragicômicos desse futuro do filme, que é na verdade o nosso triste presente no Brasil, está o drive-thru da fé. Parece não haver alegoria melhor para fazer pessoas perceberem o quão distorcido há em certas ações para se vender fé, ato que é um contrassenso por si só.

 

Os olhos de Laura Mars (Eyes of Laura Mars, 1978), de Irvin Kershner.

Os 1970s e seus tesouros. Aqui temos uma história (e roteiro) de John Carpenter dirigida por Irvin Kershner que na sequência assinaria a direção de Star wars: O império contra-ataca (1980). Tudo em Laura Mars respira o espírito dos 1970s em Nova Iorque. A começar pela abertura marcante e inesquecível nos olhos de Laura Mars (Faye Dunaway) em P&B transformando-se lentamente na imagem negativa da fotografia. Ao fundo, a bela canção tema pela voz de Barbra Streisand (outro ícone da década). Daí já vamos para a grandiloquente sequência de abertura numa exposição da famosa fotógrafa que dá nome ao filme. Mars encena imagens de assassinato com marcas famosas da moda para compor suas fotos, é a sua assinatura artística e o que pode soar como controverso para alguns acaba servindo no filme para apresentar muito bem um perfil bastante particular da classe artística nova-iorquina de então, sendo a disco music a trilha-sonora que pontua a tudo (podemos ouvir KC and The Sunshine Band e Odyssey entre outros boogies). A trama aquece quando o detetive John (um cabeludo Tommy Lee Jones) começa a investigar Mars por descobrir que suas fotos artísticas são similares às fotos da polícia, fotos privadas, sobre assassinatos reais. Há ainda outro aspecto ainda mais perturbador no filme que Kershner explora como pode, mas o roteiro de Carpenter não parece muito interessado em desenvolvê-lo. São as visões de Mars sobre crimes que estão acontecendo em tempo real. Um psicopata começa a matar pessoas próximas a ela, e Mars, como num transe (em performance correta de Dunaway) enxerga pela mesma perspectiva do assassino. Observem a particular fotografia de Victor J. Kemper (o mesmo de Um dia de cão e Xanadú), com lentes tratadas para suavizar o rosto de Dunaway nos close-ups. Laura mars é talvez o melhor exemplo de um filme feito em Nova Iorque para o que se dizia dos giallo films, isto é, histórias entremeadas por horror, drama, mistério, tudo misturado num ritmo de um thriller. Os melhores exemplos de giallo (‘amarelo’ em italiano) vem, logicamente, da Itália. Para ver uma reverência clássica assista O pássaro das plumas de cristal (1970), de Dario Argento.

Nunca deixe de lembrar (2018), de Florian Henckel von Donnersmarck

Mais lembrando como ‘o filme indicado da Alemanha para concorrer ao Oscar 2019’ ou, o novo filme do mesmo diretor do oscarizado A vida dos outros (2006). Mas, Nunca deixe de lembrar tem sua própria personalidade e deveria ser lembrado por outras razões. Por exemplo, destacar com uma elegância simples e eficiente a capacidade que a arte possui de tocar qualquer ser-humano. Até mesmo a um médico nazista. Tudo parece conduzir para este ponto, no filme. Em seus rápidos 189 minutos, começamos conhecendo o menino Kurt (Tom Schilling) na Alemanha de 1938, com a ideologia Terceiro Reich a todo vapor. O apreço do menino para com sua tia louca pelo que é sensível ao melhor da arte (vista como ‘degenerada’ pelas autoridades alemãs daquele período) leva-o ao desejo de tornar-se artista plástico. Ao longo dos anos, com a 2º Guerra encerrada e o jovem Kurt vivendo no lado oriental de seu país, ele é obrigado a produzir apenas peças que retratassem a ‘arte social’, não havia outra que servisse ao governo socialista. Em um dos pontos altos de Nunca deixe… (são muitos) há a presença da trilha sonora forte e delicada (combinação que vale ouro) de Max Richter para a sequência em que Kurt encontra o seu caminho como criador. O diretor Henckel cancela os diálogos e deixa a luz entrar no estúdio de Kurt como uma iluminação divina. A representação que o cineasta cria para dar forma plástica ao insight do então perdido artista é tocante. Este novo filme de Henckel não estreou nos cinemas brasileiros (sua duração não o ajuda diante de uma mercado exibidor que só tolera filmes extensos se houver neles super-heróis e efeitos especiais), mas pode ser visto no Pay-per-view do canal NOW.

Para ler sobre A árvore dos frutos selvagens (Ahlat Agaci, 2018), de Nuri Bilge Ceylan, clique aqui.

Mais Recentes

Publicidade