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Críticas

Projeto Gemini

Identidade e mortalidade em questão, com Will Smith em dose dupla sob a batuta cuidadosa de Ang Lee

Por Felipe Berardo | 10.10.2019 (quinta-feira)

Os principais chamarizes por trás de Projeto gemini (Gemini man, 2019, EUA) ainda devem ser fatores comuns ao mercado cinematográfico, afinal trata-se do novo filme de ação de altíssimo orçamento que estrela Will Smith como um assassino profissional que, ao decidir pela aposentadoria, acaba tornando-se alvo da agência para qual trabalhava e logo descobre que o agente mandado para executá-lo é, na verdade, um clone seu criado para ser o soldado perfeito. Há, no entanto, outro grande atrativo em discussão na campanha do longa-metragem, que consiste no processo diferenciado de gravação e projeção adotado pelo diretor Ang Lee (O tigre e o dragão; As aventuras de Pi), referido como 3D+/HFR, ou seja, é a captação das imagens em 120 quadros por segundo – cinco vezes mais rápida que o usual. 

Essa técnica, geralmente utilizada para o efeito de câmera lenta com a projeção costumeira de 24 quadros por segundo, com a projeção planejada em 3D a 60 quadros por segundo, proposta pelo cineasta, cria um efeito hiper-realista em que maiores detalhes de movimento e de profundidade tornam-se perceptíveis e transforma esses elementos em ainda mais primordiais na experiência sensorial do público no cinema. A motivação utilizada para o uso dessa tecnologia surgiu a partir da busca por criar uma realidade cinematográfica em que o ator Will Smith e seu clone, construído dentro do filme através de computação gráfica, pudessem coexistir sem causar estranhamento, visto que o processo parece mesclar mais naturalmente o irreal e o real nesse mundo imagético hiper-realista.

Ao contrário do que a imaginação cética visualiza, porém, essa inovação tecnológica não é usada aqui apenas como um adereço técnico cínico, torna-se ferramenta essencial de construção de empatia entre os dois personagens com a face de Will Smith, quase como se funcionando numa lógica metalinguística que exige o respeito emocional pela criação digital tão sincera quanto pelo corpo físico, assim como também é defendida na relação entre humanos e clones criados artificialmente dentro do filme. E esse talvez seja o ponto dramático mais forte presente no filme, a suposta máquina de matar criada com esse único intuito é tão humana e repleta de conflitos emocionais quanto sua versão original.

É importante também notar que Ang Lee não utiliza o digital como substituto conveniente para a realidade física, mas coloca ambos como componentes igualmente importantes da realidade criada para seu filme, fato perceptível pelas diversas gravações realizadas em locação, esforço que revela-se nos cenários impressionantes capturados pela câmera.

Além disso, há uma preocupação do realizador para o aumento de imersão do público ao criar detalhes táteis durante o filme, capturados por seus enquadramentos e movimentos de câmera, a partir de toda ação e movimento. Isso não apenas para personagens com pequenos gestos em lutas mão a mão e perseguições armadas, mas também para cenários sempre em processo de reconstrução através da destruição por tiros e explosões. Tudo isso trabalha magistralmente para sustentar o peso do mundo criado aqui entre o real e o digital.

É ainda mais impressionante notar que esse valor concreto e tátil no filme, que torna as cenas de ação tão empolgantes e visceralmente satisfatórias, trabalham conjuntamente ao lado dramático do filme para impulsioná-lo além do que o roteiro não tão bem desenvolvido, assinado por David Benioff (Game of thrones), Billy Ray (Capitão Phillips) e Darren Lemke (Shazam), deveria permitir. 

A cena que mais atinge algo verdadeiramente emocional dentro do filme, por exemplo, não é um diálogo ou interação social entre personagens, mas um conflito físico entre o protagonista e seu clone dentro de uma catacumba em meio a milhares de esqueletos. A sequência funciona como um tipo de discussão que, através da violência, tem seus personagens tentando lidar com suas questões de identidade e mortalidade, buscando catarse emocional e algum tipo de entendimento mútuo em meio aos ataques ininterruptos.

Mesmo que com um roteiro morno, repleto de temas já estabelecidos e desenvolvidos em outras ficções-científicas, é difícil imaginar um filme desse ano nos cinemas que argumente pela empatia e amor entre indivíduos de forma tão incomum e inspirada quanto Projeto gemini, ainda por cima num formato que poderia apenas ser alcançado através do cinema, especialmente nas mãos de um diretor tão capaz e talentoso quanto Ang Lee.

 

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