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Festivais

Roterdã IFFR (2020) – Passagens

Espelho de relações entre cinema e outras artes, e as reflexões acadêmicas e cinematográficas

Por Marcelo Ikeda | 29.01.2020 (quarta-feira)

– acima, Adelina Pontual em cena de Passagens

ROTERDÃ (HOL.) –Passagens (Passages) – de Lúcia Nagb e Samuel Paiva, Inglaterra, 2019 – Regained – Exibido no Festival de Roterdã na seção Regained, dedicada a filmes que exploram sua relação com o próprio cinema (como, por exemplo, filmes sobre cineastas ou sobre processos de produção), Passages é um documentário sobre a contribuição de outros processos artísticos (como a música, a dança, o teatro, a literatura) em alguns filmes do cinema brasileiro dos anos 1990-2000.

Passagens é o primeiro filme realizado por uma dupla de acadêmicos, de professores universitários que trabalham o cinema por uma perspectiva teórica – Lúcia Nagib, professora da Universidade de Reading (UK), e Samuel Paiva, da Universidade Federal de São Carlos (Ufscar). O ponto de partida do filme foi um artigo, escrito por Lúcia, em que ela analisa essas relações a partir da intermedialidade como elemento metodológico – a natureza do cinema como mistura intermedial entre outras artes e mídias.

Assim, é extremamente interessante como o projeto propõe um diálogo entre a academia (a “teoria”) e a realização cinematográfica (a “prática”). O fato de Lúcia e Samuel terem entrevistado os cineastas e realizado um filme, ingressando em um terreno em que não são “especialistas”, saindo de certa forma de sua zona de conforto, é um alento como forma de oxigenar a pesquisa acadêmica, onde, muitas vezes seu trabalho acaba sendo apenas lido e discutido entre os próprios pares. Um filme sobre essas questões pode, então, abrir a reflexão para outros públicos, contribuindo para uma universalização do conhecimento.

Dessa forma, vejo o título “passages/passagens” como um espelho de várias naturezas duplas (múltiplas) que integram essa obra e se complementam. Assim, vejo as passagens não apenas como a combinação entre o cinema e as demais formas artísticas, mas, neste texto, procuro me debruçar sobre outras “passagens”.

É interessante pensar o filme como uma realização entre dois países, entre o Brasil e a Inglaterra. Em termos estritos, Passages não é um filme brasileiro, mas uma produção britânica, por ter funcionado como a base de produção, onde o projeto foi gerido, desenvolvido, gestado e finalizado. Ainda assim, é nítido que se trata de um projeto fortemente brasileiro, já que, não apenas os dois diretores são brasileiros, mas toda a equipe técnica envolvida na produção e finalização do filme. A sutileza dessas relações entre o Brasil e o Reino Unido se expressa no título, em que apenas uma letra “n” o diferencia entre os dois países.

Passagens procura examinar suas questões a partir de um recorte bem definido: Lúcia e Samuel selecionaram obras de realizadores de São Paulo e Pernambuco, usualmente relacionados ao período da chamada “retomada do cinema brasileiro”. Os principais entrevistados são Adelina Pontual, Cláudio Assis, Lírio Ferreira, Marcelo Gomes, Paulo Caldas, em Recife, e Beto Brant, Fernando Meirelles e Tata Amaral, em São Paulo. O filme também complementa o relato dos diretores com o de artistas de outras funções, como a montadora Vania Debs ou o produtor João Vieira Jr, entre outros. Entendo que a escolha específica desses dois estados não se justifica exatamente pelo fato de que essas obras em particular examinam a questão teórica de uma maneira mais aprofundada ou privilegiada em comparação a outros filmes de outros estados, mas principalmente pela posição pessoal dos dois diretores – Lúcia é de São Paulo, e Samuel é de Pernambuco – que se expressa numa relação afetiva com esses realizadores e com seus objetos de estudo.

As passagens se espelham, portanto, não apenas nas relações entre o cinema e as outras artes, mas também nas entre a reflexão acadêmica e a realização cinematográfica, entre a participação dos dois países, entre os dois estados desses países, entre a posição pessoal e teórica dos dois realizadores, entre os gêneros (homem e mulher), entre outros.

O filme é composto de basicamente por entrevistas com os realizadores, mas há um esforço pela montagem em tornar os limites fluidos, como se as “passagens” entre os blocos temáticos fossem mais orgânicas para o espectador. Para isso, o trabalho da equipe foi fundamental, como o desenho de produção de Sílvia Macedo, a brilhante montagem de Tatiana Germano e a edição de som de Francisco Mazza (todos brasileiros residentes na Inglaterra). No entanto, para além das entrevistas, há momentos sutis em que surgem breves comentários do papel dos diretores. O diálogo entre os dois realizadores-acadêmicos, que se expressa no perfil dos estados escolhidos, é, portanto, incorporado sutilmente no interior do filme. Vemos, em alguns momentos, não apenas Lúcia e Samuel formulando perguntas para os realizadores, mas também caminhando pela cidade e visitando alguns marcos locais que serviram de locação para os filmes. Esse diálogo extrapola da posição pessoal dos realizadores para os próprios objetos de análise. Caso mais típico é a original relação que o filme propõe entre o rap e a embolada, dois gêneros musicais tipicamente locais, que passam a ser integrados numa perspectiva de diálogo. Em outro aspecto, a relação entre “os acadêmicos” e os “realizadores” é também aproximada. Num certo momento, o produtor João Júnior comenta sobre sua surpresa ao perceber o impacto de um plano que sobrevoa a cidade de Recife em O rap do pequeno príncipe sobre as almas sebosas. E, ao comentar uma opção de Viajo porque preciso, volto porque te amo, João afirma que a pergunta dos dois realizadores o fez descobrir algo sobre o qual não havia pensado antes. Ou seja, ao estimular a reflexão sobre o seu próprio processo criativo para os próprios artistas, o filme produz uma relação de mão dupla, e não apenas unilateral, entre a teoria e a realização, entre a reflexão e o fazer.

Entre o Brasil e a Europa, a que público o filme se direciona? Ao público brasileiro, que pode ter uma maior familiaridade com essas obras ou com os temas a que elas se referem, ou ao público europeu, que vê não só o cinema mas a cultura brasileira como um elemento estrangeiro? A sutileza de Passages é promover essa “passagem” – falar do Brasil para um público global mas com um certo acento local, de forma a preservar seu frescor também para o público local. Desafio comum ao cinema brasileiro que deseja se projetar internacionalmente, viajando pelos mercados e festivais internacionais. Desafio enfrentado pela própria Prof. Lúcia Nagib, ao deixar o Brasil e passar a morar na Inglaterra. O filme combina as entrevistas dos realizadores com trechos dos próprios filmes, despertando no espectador o desejo de “ver mais” – era comum no final das sessões, os espectadores estrangeiros dizerem que se sentiram estimulados a ver os filmes, que eles não conheciam. O que vale também para os brasileiros, já que conhecemos tão pouco sobre nosso próprio cinema.

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