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Festivais

44ª Mostra de SP (2020) – Pai

Um pai silencioso e um estado desumano

Por Ivonete Pinto | 29.10.2020 (quinta-feira)

Se tivesse um prêmio para a cena mais impactante  nesta 44ª  Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, certamente  o sérvio Pai (Otac, 2020) teria uma chance. Logo na abertura,  uma mãe em desespero joga gasolina no corpo e ateia fogo em frente aos dois filhos, uma menina e um adolescente. Eles estão no pátio de uma empresa que despediu Nikola, o marido,  e não lhe paga o que deve. Os serviços temporários que ele faz não são suficientes para sustentar a família, que passa fome.

Depois da sequência impressionante, a mulher (Nada Sargin) é hospitalizada, entra em colapso mental, e os filhos são recolhidos pela assistência social.

É óbvio que a empresa que deve a Nikola  (Gordan Bogdan)  deveria ser responsabilizada, ser acionada  pela justiça, é o que os espectadores ficam pensando.  Diante da autoridade, Nikola  não consegue verbalizar este direito. E aí reside o ponto central do drama:  este homem não tem condições de verbalizar sua defesa. Não consegue reagir.

A exploração, que leva à pobreza extrema, não permite que estas pessoas busquem seus direitos de forma racional.

A mise-en-scène  de Pai, que tem coprodução com Eslovênia e Croácia, coloca o juiz Vasiljevic (Boris Isakovic),  com  seu terno preto e gravata,  atrás de uma grande mesa, com dois assistentes ao lado. A distância entre eles e o pobre  homem é perceptível  e diz tudo sobre a hierarquia das relações, bem como da falta de chance deste homem. Maltrapilho e  acuado,  só fala por  monossílabos, sim, não…

As crianças foram para um abrigo e serão dadas à adoção. Para recuperar os filhos, o pai precisa, segundo a autoridade,  conseguir que a energia elétrica seja reinstalada na casa, conseguir uma geladeira, um boiler, um computador para as crianças, enfim, ajeitar a casa. Depois de conseguir atender o básico, Nikola volta  ao juizado e fica  sabendo que as crianças já foram para adoção, em um esquema que Nikola simplesmente não compreende. Nikola não tem permissão nem para ver os filhos. A única chance de reverter a situação é obter um documento do próprio ministro do bem-estar social, em Belgrado. A história se passa em um vilarejo, distante 300 quilômetros da capital.

Cena de “Pai”

Antes de avançar neste drama pungente, vale lembrar que a Sérvia fazia parte da Iuguslávia, que foi desmembrada com as guerras separatistas-étnicas. Por trinta anos, o Marechal Tito governou com mão de ferro aquela região composta de várias repúblicas. Um comunismo que gangrenou  e deu lugar, na Sérvia, ao governo do “carniceiro dos Balcãs”,  Slobodan Milosevic.

Ou seja, os sérvios tiveram líderes, para o bem e para o mal. Viviam sob o abrigo de um aparato que trazia para si a função de protetor. O que vemos em Pai, é a ausência da figura paterna que era exercida pelo Estado. O Estado atual trouxe desemprego, riqueza para poucos e uma burocracia tão absurda quanto nos tempos da ditadura. Quanto maior a burocracia, maior o poder do Estado, maior a corrupção. Já vimos este filme.

O que um homem como Nikola pode fazer?

Como pai, ele segue para Belgrado a pé, pois não tem dinheiro para ônibus. Sua saga percorrendo os 300 quilômetros, de saída apresenta um problema: ele á parado pela polícia porque é proibido caminhar pelas rodovias. Se insistir levará uma multa astronômica. Nikola então caminha por vias paralelas, matas, vilarejos, dormindo ao relento e em casas abandonadas.

O cão que resolve acompanhá-lo é atropelado, e o filme nos mostra o lado sensível de Nikola ao tentar enterrar o bicho. Depois de cinco dias de viagem, algumas caronas e alguma solidariedade no caminho, Nikola chega a Belgrado. Não é recebido pelo ministro, como esperado. A estas alturas, sua história já estava circulando na imprensa e ele  finalmente é recebido pelo jovem ministro cheio de compreensão para dar. Parecia que tudo estaria  resolvido. Mas o ministro só lhe dá uma carta de recomendação e pede para tirar uma foto com ele “para o twitter”. Nikola se enche de otimismo, ganha até uma gorjeta do ministro, volta à sua cidade e… a autoridade local não está sujeita às ordens do ministro. A burocracia e a corrupção (os interesses da autoridade não são nem um pouco cristãos) fazem tudo voltar à estaca zero.

Somos condoídos com a insensibilidade do sistema, mas a tonalidade  da narrativa é seca. Não apela a sentimentalismos,  não é maniqueísta. O personagem de Nikola é quase um autômato que,  imbuído da missão de resgatar os filhos, praticamente não tem expressão, não muda o tom de voz. Exceto por momentos-chave que não cabe revelar.

O filme é lento, acompanhamos o périplo do pai por duas horas. Tempo que nos permite observar aqui e ali como vivem os sérvios, o quanto os conflitos os tornaram “duros”. Quando Nikola volta para casa, esta foi saqueada.  Os próprios vizinhos levaram suas coisas na esperança de  que ele não voltaria. Exatamente como aconteceu durante a guerra nos Balcãs. Quando as famílias regressavam  e suas casas não haviam sido incendiadas, invariavelmente já estavam ocupadas. Assim, quando Nikola vai de casa em casa simplesmente pegando de volta mesa, cadeiras, louças, ele o faz sem expressão, sem revolta. Já tinha visto aquilo tudo antes, não estava surpreso. Naturalmente, este é um subtexto.

É no subtexto também que encontramos imagens do grau de pobreza dos sérvios e de algumas das ex-repúblicas . Velhos e jovens, por exemplo, o dia inteiro em feiras livres vendendo pequenos objetos da casa, como pratos, panelas,  fechaduras usadas… Há quem conclua que a pobreza deles não é maior do que a brasileira. Mas estamos na Europa, os medidores da miséria não passam ainda pela subnutrição. E afinal de contas, empatia não deveria ter território.

Vencedor dos prêmios do Júri Ecumênico e do Público da seção Panorama do Festival de Berlim, o filme do diretor sérvio  Srdan Golubović, em seu terceiro trabalho na berlinale, não deveria ser visto apenas como um pungente conto sobre a pobreza e a persistência de um pai, reconhecido por  prêmios normalmente sensíveis ao tema. Pai é também um recado político. Uma tese sobre como uma guerra selvagem e a estrutura de um estado liberal, igualmente selvagem, pode esfacelar seres humanos íntegros.

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