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Clássicos

O Judeus Süss (1940)

O Judeus Süss e a propaganda antissemita

Por Humberto Silva | 06.03.2022 (domingo)

O Judeu Süss (1940), dirigido por Veit Harlan, é o mais bem sucedido filme de propaganda antissemita da história. Realizado pelos Estúdios de Babelsberg (por onde passaram grandes nomes do cinema alemão, como Fritz Lang e F. W. Murnau; e que, durante o período nazista, serviram aos interesses de Hitler), sob encomenda de Joseph Goebbels, fez só na Alemanha nazista em torno de 20 milhões de espectadores (há estimativa de que tenha sido visto por um milhão de franceses). Sua estreia ocorreu no prestigiado Festival de Veneza, sob os olhares de Vitorio Mussolini, filho do duce, o que contribuiu para sua recepção massiva na Europa sob domínio do III Reich. O filme põe de cara, em primeiríssimo plano, a discussão sobre os efeitos do cinema quando utilizado como instrumento de propaganda ideológica. Antes de avançar em aspectos de sua produção e conteúdo temático, contudo, faço uma breve digressão.

Uma obra cinematográfica escapista, como as produzidas nos grandes estúdios hollywoodianos na década de 1930 – o que também se deu em Babelsberg –, pode conter subliminarmente mensagem política; portanto, um fundo ideológico que não tem nada de inocente (a esse respeito, nenhuma novidade além da que escreveu Jean-Louis Baudry sobre “efeitos ideológicos produzidos pelo aparelho de base”; para Baudry, o cinema é uma espécie de espelho psíquico que reflete o modelo da ideologia dominante). Uma obra cuja trama exibe personagens imersos em tensões sociais expressa um ponto de vista sobre a sociedade em destaque: uma declarada neutralidade política que a tornaria alheia esconde os “aparelhos de base” que movimentam a engrenagem social. Com isso é traçada uma demarcação entre o que a obra revela nos elementos que compõem sua diegese e eventuais declarações de seus realizadores: quando um cineasta nega, ou tenta justificar eventuais efeitos provocados por seu filme, ou é ingênuo, e ignora o que provoca, ou faz uso de má-fé. Aqui sigo o princípio do terceiro excluído aristotélico: ou ignora ou não ignora; se não ignora, entre a verdade e a mentira escolhe mentir.

Esta breve digressão, com propósito evidentemente esquemático, é para afirmar que O Judeu Süss não é escapista e sim exemplo de filme que se encaixa nas obras que expressam explicitamente sua posição; no caso, a defesa da ideologia nazista; mais pontualmente: sustenta a causa do antissemitismo. Ora, terminada a guerra, com a derrota do III Reich, Veit Harlan foi a julgamento. Acusação: ter colaborado com sua obra para crimes contra a humanidade. Inocentado, não sem controvérsia, ele argumentou que “acatava ordens que iam contra sua própria consciência, e que os aspectos mais explicitamente antissemitas do filme foram determinados por Goebbels”. Harlan não nega que não tinha consciência do que fez; portanto, há de se concluir ter agido de má-fé para se safar da condenação.

Passemos agora, então, ao filme e seu realizador. Harlan – nome de proa do cinema alemão nos anos de 1940 – hoje não é tão conhecido quanto Leni Riefensthal, de quem Triunfo da vontade (1935) fascina e ojeriza. Por isso, ela gera um incômodo dilema: como amar um filme cujas imagens causam horror? Ou, como não misturar o valor estético de uma obra e as ideias que ela expressa? Negar o valor estético de Triunfo da vontade implica repensar critérios. E, no extremo oposto, ser levado a absurdo. Por que Outubro (1927), de Sergei Eisenstein teria mais valor? A se considerar, claro, que ambos têm explícita dimensão apologética (a causa nazista, no primeiro; a comunista, no segundo). Essa uma discussão que traz inúmeros problemas. E se torna delicada em obras cujo valor estético não é exatamente posto em pauta e sim a bandeira que levanta: um filme desinteressante esteticamente não implica que seja despercebido.

Harlan, a esse respeito, encontra-se nessa segunda situação. O Judeu Süss, ao contrário de Triunfo da vontade, não é um filme que possa ser examinado conforme sua concepção estética (melhor: sua estética não põe em discussão, por exemplo, o uso de impressionantes panorâmicas de forte impacto visual; ou de contra-plongée para exaltar a personificação do poder). Aliás, a obra de Harlan como um todo, ao contrário da de Riefensthal, o colocaria apenas entre os realizadores medíocres, como tantos outros em qualquer cinematografia. Ele não afronta as convenções na narrativa clássica e seu filme é conduzido de modo a ter um final sem qualquer quebra de expectativa. Em suma, do ponto de vista formal, em Harlan não há novidade. E mesmo, ao considerar que a grandeza de uma obra independa do clichê da novidade, ou da exuberância estética, esse também não é o caso (os derradeiros filmes de Alfred Hitchcock, previsíveis, repetem a formula e são magistrais…).

Para a história do cinema, Harlan pode ser compreendido tão só como um cineasta que ocupou espaço deixado por Fritz Lang e outros, que se impuseram no movimento Expressionista e deixaram a Alemanha com a ascensão do nazismo. No momento em que Hitler precisou, ele estava na hora certa, no lugar certo. Assim fez O grande rei (1942) e Kolberg (1945), sempre sob a supervisão de Goebbels, e que igualmente serviram de instrumento de propaganda (este último, um épico realizado no ano em que a guerra terminou, foi a produção mais cara realizado pelo III Reich). O Judeu Süss, então, é produto de uma época, e sem o encontro desta e o fortuito na experiência individual, como tantos outros, não existiria nos anais da história. O caso é que a história tem caprichos. E a história do cinema, como a da cultura, é feita em igual medida por obras exuberantes e, também, pelo que está no lodo, no submundo. Sem esse outro lado, a palavra “história” não é senão um mal-entendido. O Judeu Süss, ao fim e ao cabo, é o mais bem sucedido filme de propaganda antissemita.

De fato, o que o caracteriza? Trata-se de um drama histórico com coloração farsesca. Eis então algumas informações necessárias. O judeu Joseph Süsskind Oppenheimer (1698-1738) foi assessor de finanças do duque Karl Alexander (1684-1737), do Ducado de Württemberg. Influente enquanto protegido do duque, com a morte deste foi acusado de esmagar a população com a cobrança de impostos e favorecer a corrupção. Sua execução por enforcamento foi uma cerimônia macabra: içado numa gaiola de ferro até uma altura de dez metros antes de ter o piso aberto, com a população aos gritos de “morte ao judeu!”. Sua morte inspirou injúrias e difamações sobre sua vida supostamente dissoluta. A mais famosa, um conto de Wilheim Hauff, publicado em 1827. O personagem não caiu no esquecimento, permaneceu no imaginário alemão. Em 1925 Lion Feuchwanger, de família judia, publicou um romance histórico sobre o caso Süss que teve enorme repercussão e sucesso de vendas. A verdade sobre o caráter de Süss é controversa. E não seria diferente ao imaginarmos sua origem judaica e o poder que desfrutou, cercado por alemães. O que importa, entrementes, é que ele serviu de símbolo para os objetivos nazistas.

Ferdinand Marian como Joseph Süß Oppenheimer

É nesse contexto que Goebbels retoma o caso Süss e confia a Harlan a realização do filme, que tem como referência, justamente, o conto de Wilheim Hauff. Numa síntese rápida, o filme se inicia numa cerimônia em que o duque Karl Alexander, ao herdar o ducado, jura respeitar a Constituição, que não permite a passagem de judeus por seus portões. A Corte, luterana, é devota e leva uma vida frugal, sem ostentação. O duque, ao invés, é vaidoso e se imagina numa Corte majestosa como a de Versalhes. É nesse momento que Süss Oppenheimer entra em ação. Ele consegue carta branca com um auxiliar do duque para entrar clandestino em Württemberg. Para tanto, tirou a barba e se vestiu como alemão (o historiador Marc Ferro deu a seguinte explicação para esse gesto: Harlan mostra que o judeu tem duas caras: a do gueto, que não engana, e a da cidade, que ilude pela aparência). Na Corte, ao mesmo tempo em que gera intrigas, mais se envolve com o poder e ingere nas decisões de Karl Alexander. O caprichoso duque acaba completamente preso às maquinações de Süss. Com a morte do duque, contudo, sua sorte mudou e ele teve o fim já anunciado. Como exibido no filme, a morte de Süss purifica Württemberg da sujeira trazida pelo judeu, que contaminou e levou à morte Karl Alexander. O grito “morte ao judeu!”, no século XVIII é o mesmo grito em 1940.

O tom farsesco põe personagens e situações que geram riso, pelo modo com que são caricaturados. Karl Alexander é exibido como uma figura grotesca, pantagruélica, imensa e imersa em bufonaria, inepta para perceber que é um joguete nos interesses de Süss. Para os nazistas, rir de Karl Alexander é rir de quem, mesmo com boa-fé, é estulto para não perceber as tramoias de um judeu. Este, por sua vez, é exibido como um ser maléfico, ardiloso, terrível, capaz de atos sórdidos para ludibriar. Por isso, é motivo de escarnio ao ser executado de forma humilhante. Ora, trata-se do judeu pego em sua astúcia e condenado à morte. Assim, para estimular o ódio, por determinação de Goebbels o filme era frequentemente exibido para tropas da SS. Essa a perspectiva dos nazistas e assim, enquanto vigeu o III Reich, o filme visou deleitar as plateias na Europa, exibindo de modo sarcástico a natureza torpe de um judeu e seu fim ignominioso.

O Judeu Süss é um filme desinteressante a se considerar exclusivamente sua forma. Esta, por outro lado, assume feição distinta à medida que mudemos a perspectiva do olhar. Para os nazistas, uma obra que se oferece para catarse, em sua relação com os judeus. Fora dessa perspectiva, um filme abjeto, uma bufonaria indigesta sobre os requintes de crueldade dos nazistas. Retomo, então, a questão dos efeitos do cinema como instrumento de propaganda ideológica. É difícil traçar, mesmo diante de pesquisas científicas abalizadas, uma linha que demarque a relação precisa de causa e efeito entre uma imagem e uma ação instigada por ela. Podem ser feitas generalizações, mas no plano da experiência individual qualquer ação envolve fatores e variáveis despercebidas pela fria amostragem de uma pesquisa. Os efeitos profundos de uma imagem num indivíduo isolado são imensuráveis. O que se pode extrair é uma predisposição. De modo a se conjecturar, seguindo certa linha gnosiológica, sobre a validade dos efeitos provocados pelo filme.

Heinrich George (como Karl Alexander, Herzog von Württemberge) Ferdinand Marian (como Süß Oppenheimer)

No plano individual, se é difícil estabelecer relação de causalidade entre obra e ação que ela instigaria, no plano coletivo, o da turba, a história coleta casos em que palavras de ordem, slogans, imagens funcionam como rastilho de pólvora. O massacre de São Bartolomeu, na França em 1572, é emblemático. Engendrado pelos reis católicos, milhares de huguenotes foram assassinados no dia de São Bartolomeu. O filme de Harlan tem esse potencial explosivo. Suas imagens, os diálogos entre os personagens, a maneira como a trama é conduzida exortam o sentimento de ódio aos judeus (não nos esqueçamos que a derrota do III Reich não foi a derrota do nazismo…). Daí que a forma, em si desinteressante, passa a ter outro sentido conforme se entenda que Süss não é um mero personagem, mais um arquétipo. Ele representa o caráter maléfico de um povo; sua morte, portanto, está em sintonia com a “solução final” para o povo judeu.

Após a guerra, o filme foi proibido em todo mundo ocidental. A maior parte das cópias foi destruída. A partir de 1955 sua projeção foi autorizada na Republica Federal da Alemanha e, com a unificação da Alemanha em 1990, em todo país. Suas poucas projeções, entretanto, foram cobertas por polêmicas e protestos. O sentimento é de que se trata de uma das descrições mais odiosas aos judeus na história do cinema; com isso, não se justifica sua exibição. Ciente do que foi o holocausto, a exibição pública do filme não deixa de ser um insulto ao povo judeu, ao mesmo tempo em que pode estimular nazistas nas quatro cantos do mundo. Feita a soma, a mínima menção a O Judeu Süss alimenta o que não teria razão para ser alimentado. Escrever sobre ele não deixa de ter certa dose de contrassenso, ou mesmo de imprudência…

Ocorre que o filme foi realizado, pode ser visto e essa situação envolve um dilema moral. Consideramos essa palavra em sentido técnico: diante de uma escolha, a afirmação de uma situação traz consequências negativas; mas a negação também as traz na mesma proporção. Não é possível, de qualquer forma, que a escolha não seja feita. No caso, estimular que se veja ou não O Judeu Süss. Exibi-lo potencializa predisposição para ação em quem cultua ódio aos judeus. Nisso um dado pernicioso que não se pode subestimar. Não o exibir, por outro lado, é colocar embaixo do tapete o problema; fingir que o filme não existe; que a crueldade dos nazistas não foi narrada pelos próprios nazistas e projetada como feito glorioso. Não o ver coloca a questão do quanto podemos suportar de verdade, por mais terrível que esta seja. O que o filme mostra, feita igualmente a soma, é como a conduta humana, prefigurada na ideologia nazista, desce a profundezas insondáveis.

Na história do cinema, poucos filmes trazem para o potencial espectador um problema de consciência tão perturbador. Por envolver um dilema moral em quem não é nazista, não há saída possível sem perda. Cada um deve consultar a consciência sobre se vale ou não a pena vê-lo. Eu não estimularia; mas, igualmente, não o destruiria, numa repetição do ritual em que os nazistas queimaram livros e vandalizaram obras de arte que para eles eram arte degenerada.

Humberto Pereira da Silva é professor de história do cinema na FAAP e na Academia Internacional de Cinema e crítico de cinema. É autor de Glauber Rocha: cinema, estética e revolução (Paco Editorial, 2016) e membro da Abraccine.

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