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Críticas

Aquilo que Eu Nunca Perdi

Sobre estar à altura (ou não) de sua personagem.

Por Yuri Lins | 08.09.2022 (quinta-feira)

Com Aquilo que eu nunca perdi (Bra., 2021), a realizadora Marina Thomé busca fazer um retrato da cantora e compositora Alzira E, tecendo uma série de registros feitos nos dias de hoje com imagens de arquivo. A grande força do filme está justamente na sua protagonista: alguém com uma trajetória de vida que sempre foi pautada por uma intensa criação artística. Alzira nasceu no interior do Mato Grosso do Sul e começou sua carreira ao lado de seus irmãos, Geraldo e Tetê Espíndola. Nos anos 1980, muda-se para São Paulo e passa a ser parceira de nomes seminais da vanguarda paulista. Já nos anos 2000, Alzira continua atuante e liderando uma banda de Rock. Mais do que boas histórias, Alzira oferece ao documentário todo seu magnetismo, seu poder capaz de cooptar com muita facilidade o interesse do espectador. Filmes com uma protagonista assim parecem já nascer com metade do jogo ganho, precisando apenas esculpir a forma mais coerente para conter as suas complexidades. 

No entanto, são nas escolhas formais que o filme de Marina Thomé soa em desacordo com tudo o que Alzira E entrega: a todo momento a câmera tenta passar uma sensação de intimidade com o entorno, estabelecendo uma proximidade vacilante em relação àquilo que filma – os planos buscam as silhuetas das pessoas, traços de seus corpos, por vezes concentrando sua atenção em objetos que estão dispostos nos ambientes. É como se ela estivesse sempre desviada do centro nevrálgico dos acontecimentos, recusando-se a olhar as pessoas na altura dos olhos. Fica-se com a sensação de que há um mundo de acontecimentos mais interessantes na periferia da imagem, nos limites do que a lente registra, ou em tudo aquilo que fica reservado no fora de campo. Suas escolhas de decupagem acabam por confundir o que é intimidade com uma atitude afásica do olhar. 

Nas escolhas da decupagem, a periferia parece importar mais que o centro.

Tal sensação também é corroborada pelo tipo de montagem empreendida: da mesma forma que a decupagem evita o centro, a montagem recusa que as cenas exponham tudo o que contém, nunca durando o tempo necessário para instalar o espectador no interior delas.  Um mesmo plano está sempre sendo atravessado por outros registros, dispersando a ação que cada um deles carrega. Na medida em que as suas imagens se acumulam, elas se planificam e se esvaziam, sendo reduzidas a um fundo para agregar fragmentos de voice over, tornando-se apenas ilustrações para reminiscências e discursos. Sendo um documentário sobre uma cantora multifacetada, mesmo a sua música tocada no presente parece estar apenas reservada aos momentos de transição entre uma cena e outra, nunca possuindo tempo suficiente para que se concretizem e se imponham. 

Planos são atravessados por outros registros, dispersando a ação que cada um deles carrega.

É interessante comparar as apresentações musicais registradas para o filme e aquelas que pertencem aos arquivos de TV.  Enquanto tudo o que é inscrição da atualidade é feito com as debilidades expostas acima, são as imagens televisivas que captam com inteligibilidade as performances de Alzira E. É através delas que será possível ver tudo aquilo que sua figura emana de aptidão musical, uma vez que a câmera sempre busca o melhor ponto de visão para captar as suas apresentações. Extraídas dos arquivos das emissoras, a transposição destas filmagens para dentro de um meio cinematográfico evidencia ainda mais a qualidade de registro (histórico, técnico, poético…) que elas já possuíam, acabando por refletir a insuficiência de Aquilo que eu nunca… no trato com o presente. São essas cápsulas catódicas de tempo que melhor expuseram todo o talento de Alzira E.

Somando a decupagem que se desvia do centro com uma montagem que amalgama suas matérias, a estrutura do filme permanece frágil, como se todas as cenas estivessem guiadas não pelo pensamento que busca uma unidade, mas por uma sopa de imagens e comentários que se articulam de forma aleatória. O filme parece ser fundado por um conjunto de interlúdios autossuficientes, jamais por blocos e alicerces narrativos.   Contudo, partindo dessas premissas formais, aceitando a falta de prumo e a natureza cumulativa de sua estrutura, é possível se fixar em alguns lampejos que fogem à regra. Por exemplo, a conversa entre Alzira E e a compositora Luli onde elas rememoram uma música surgida num sonho, ou mesmo na sequência de um show onde uma iluminação vermelha recai sobre o rosto de Alzira e agrega uma atmosfera de suspensão à sua música, que é executada com bastante força.  São momentos assim que acabam por quebrar um pouco o sistema estabelecido pela forma do filme, justamente porque permitem uma maior imersão no interior da ação.

O que difere Aquilo que eu nunca… de obras como Sympathy for the devil (Jean -Luc Godard, 1968), Ne change rien (Pedro Costa, 2009) ou Get back (Peter Jackson, 2021), todas sobre músicos ou acerca da música, é que esses são filmes em que, a despeito do estilo de cada um, os seus realizadores compreendem os seus personagens como presenças, sendo a música uma matéria indissociável do que eles são: é na atenção dedicada que a câmera oferece ao momento em que o canto é vocalizado ou quando a mão extrai e ordena as notas musicais de um instrumento.  E tudo aquilo que é silêncio, que é da ordem da intimidade – momentos amenos de confraternização entre os amigos e familiares, ou os instantes de solidão de cada um – também são contemplados com atenção plena. 

Ao final, Aquilo que eu nunca perdi soa como uma oportunidade perdida, como se, estando diante de uma personagem tão rica e disruptiva como Alzira E, o filme não conseguisse oferecer a ela um retrato que fizesse jus à sua potência. 

 

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