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Críticas

A Mãe (texto 2)

Riscos no campo da representação da dor individual e contida

Por Humberto Silva | 06.11.2022 (domingo)

O subgênero favela movie é um dos mais profícuos no Basil nos últimos anos. Alguns dos filmes mais badalados e de circulação internacional têm em narrativas de confronto por pontos de controle do tráfico ou embate entre o tráfico e a polícia nos grandes centros urbanos seu leitmotiv. A mãe, de Cristiano Burlan – prêmio de direção e atriz (Marcélia Cartaxo) no 29º Festival de Gramado – se insere no subgênero e ratifica a força do favela movie em nossa cinematografia.

Como em qualquer filme de gênero – ou subgênero… –, há franjas que se soltam, traços imprecisos, momentos que escapam a convenções. Claro, com isso, o risco de frustrar expectativas de uns; mas, na mesma medida, buscar um olhar menos estandardizado. No caso de A mãe, Burlan opta por lateralizar a violência explícita, de forte apelo publicitário (a tal cosmética…), que fez a fama de um Cidade de Deus (2002) ou um Tropa de elite (2007), marcos incontestes do favela movie.

A única cena de assassinato em A mãe foi filmada em plano geral, com algozes e vítima como pontos distantes. Com isso, algo como a frieza do dado estatístico, da banalização da violência na calada da noite como mero lance de azar no jogo da vida – em qualquer lugar na periferia, invertendo a máxima, se está no lugar certo, na hora certa.

A mãe, de fato, tem como protagonista a mãe (Cartaxo) cujo filho adolescente “desapareceu”. Ela o deixou em casa, foi trabalhar – é camelô; vende óculos coreanos contrabandeados, quiçá – e, na volta, não o encontrou. O filho, estudante turista no ensino médio e letrista amador de hip hop, havia saído para um rolê com um parça da comunidade e, por azar (hora certa, lugar certo), cruzou com a polícia. Como previsível, a casa caiu.

Burlan poderia, com foco na mãe, tratar de forma exasperada a angústia, o desespero dela, com a perda do filho. Ele segue, entretanto, outro caminho. Com efeito, nela, na vizinhança, na reação do traficante que controla a área, na polícia, há um clima de naturalização: a previsibilidade na probabilidade estatística de que o azar traçou o destino fatal do filho. Embora no filme haja momentos de inconformismo, a mãe toca a vida e não recebe um grupo de evangélicas porque tem panela no fogo…

Quando a mãe acorda no dia seguinte ao desaparecimento e vê que o filho não dormiu em casa, ela maquinalmente tenta contatá-lo pelo celular. Não tendo retorno, maquinalmente ela vai à delegacia e relata o ocorrido ao escrivão. Este, maquinalmente, recolhe seu relato e toca o expediente: é só mais um BO.

Seguindo a senha da naturalização da violência na periferia paulistana, A mãe se exime de um acento mais propriamente documental, visceral sobre as relações sociais (lembro que Burlan tem se notabilizado como um dos nomes mais representativos do Documentário brasileiro, com obras inquietantes e viscerais, em que se destacam Construção (2006), Mataram meu irmão (2013) e Elegia de um crime (2018), sua trilogia do luto).

Essa opção pode frustrar a expectativa do espectador que espera um retrato mais explícito e nuançado da convivência entre os moradores em uma comunidade. Mas também revela que Burlan se arrisca numa microssituação com horizonte em uma vida de quem margeia os grandes centros urbanos.

Vejo, portanto, em A mãe, um filme que pode decepcionar dependendo do olhar que se lance sobre ele. Mas vejo, igualmente, uma proposta arriscada do diretor, pois ele exige do espectador atenção para o quanto a naturalização da violência esconde um sofrimento individual e contido: no momento do reconhecimento do corpo do filho no IML, a mãe denega a realidade estampada diante de seus olhos: “Esse não é meu filho”, diz, peremptória.

Leia também o texto de Luiz Joaquim para A mãe, escrito por ocasião da cobertura no Festival de Gramado.

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