O Milagre
Ciência versus Fanatismo Religioso. Coisa de séculos passados?
Por Luiz Joaquim | 19.12.2022 (segunda-feira)
Disponível aos assinantes da Netflix desde 16 de novembro, O milagre (The Wonder, EUA, 2022), do chileno Sebastián Lelio (mundialmente celebrado pelo oscarizado Uma mulher fantástica) provoca um desejo impotente aos olhos que nele repousam.
A frustação vem em função de sua composição visual. Temos aqui algo tão meticulosamente trabalhado para oferecer imagens de tirar o fôlego, nos remetendo aos melhores Rembrandt, que é impossível seguir vendo o filme numa tela de tevê (por melhor que esta seja) livre do desejo de o imaginarmos numa bem equipada sala de cinema com projetor moderno e tela larga.
Em sua trama ocorrendo em 1862, O milagre, adaptado do livro de Emma Donoghue, traz Florence Pugh (Oscar em Adoráveis mulheres) como uma enfermeira inglesa contratada para acompanhar o incomum caso de uma menina no interior da Irlanda que há quatro meses, quando completou 11 anos de idade, parou de comer e segue saudável.
Na vigília ao qual Elizabeth (Pugh) foi contratada para acompanhar por 14 dias a saúde da menina Anna (Kíla Lord Cassidy), está também uma sacerdotisa, a Irmã Michael (Josie Walker), ali para aferir o tanto de milagroso que há nesse episódio. Na verdade, esse é o grande interesse da comunidade extremamente católica que convoca as duas mulheres para se alternarem a cada 8 horas na vigília sobre Anna. Um milagre seria, com o perdão do trocadilho, um presente divino àquele vilarejo tão remoto e pobre. E não apenas em termos religiosos, mas financeiros.
Nesse sentido, o filme de Lelio cai como uma luva para debates que enfocam o fanatismo religioso colocando-se contra a ciência, e o quanto isso pode ser fatal quando uma vida está sob risco de morte.
Pugh sustenta o filme quase que inteiro ao lado da boa iniciante Lord Cassidy, e com o apoio do sempre bom e subaproveitado Tom Burke (veja-o em Coisas verdadeiras, 2021). Ele é o impertinente jornalista Will, que questiona o fanatismo da comunidade e tira Elizabeth de seu lugar de conforte para tornar-se seu aliado.
Dizer mais seria dizer demais.
Vale, porém, registrar que Lelio estabelece um ritmo talvez pouco atraente para os vorazes e apressados consumidores de/da Netflix, dando à primeira parte de O milagre um tempo de entrosamento ao contexto um tanto, digamos, esticado.
Alguém pode sair em defesa desse ritmo apontando o esmero na beleza plástica do filme e seu merecido e necessário tempo de contemplação. Mas a defesa não se sustentaria se levamos em conta que o mesmo encantamento plástico está lá na segunda metade do filme, que segue em ritmo bem mais envolvente. Em outras palavras, uma coisa não é excludente da outra.
Concluindo, é provocadora a sequência de abertura de O milagre, ligando um botão na cabeça do espectador direto a Dogville, de Lars Von Trier, para logo depois ser desligado. Melhor é o leitor conferir por conta própria, vendo o filme, do que entrarmos em mais detalhes aqui.
Apenas a título de avaliação, podemos atestar que Lelio e Von Trier são distintos nos objetivos formais e estéticos e, por conseguinte, em seus resultados também.
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