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Digital

Taiguara: Onde Andará teu Sabiá?

O tributo de um crítico de cinema para um cantor apaixonante

Por Ivonete Pinto | 09.12.2022 (sexta-feira)

Estamos diante de um documentário de compilação por excelência. Pouco usual no seu voluntarismo ao trabalhar com uma grande quantidade de arquivos sem ter orçamento para tal, mas fiel à essência do subgênero.  O crítico de cinema Carlos Alberto Mattos (conheça seu blog aqui), nesta imensa operação de montagem, apropria-se de arquivos de imagens e sons disponíveis na Internet para dar sentido histórico ao imaginário da MPB de décadas atrás com Taiguara – Onde Andará teu Sabiá?. O personagem Taiguara, com sua inteligência superior, nos coloca em frente a um período que alguns querem celebrar. Carlos Alberto, através do cantor,  nos diz claramente: é preciso não esquecer para não repetir.

Quem se pega cantando  junto com Taiguara ao ver o vídeo (o diretor chama de vídeo-montagem para marcar a despretensão) entrega sua idade. Quem  se dá conta que sabe de cor muitas das músicas entrega mais ainda. Dificilmente novas gerações conhecem ou mesmo conseguem, numa eventual visada do filme, entender aquela figura.

O cinema brasileiro tem nos dado muitas cinebiografias de cantores, em vários estilos,  em vários formatos e orçamentos. O engajamento do espectador, em todas, tem a ver com a admiração, com o “gosto” por tal ou tal músico. Se envolver  com um documentário sobre Belchior ou Emicida, por exemplo, seguramente tem a ver  com gostar de suas músicas e, não raro, de suas posições políticas.

Capa do ‘Canções de Amor e Liberdade’

E a música de Taiguara, romântica, política, existencial, um tanto brega  (parte dela, ao menos) é contagiante. Ele fala de sexo e resistência na mesma frase. Mesmo que não se tenha vivido os festivais dos anos 1960, quem aprendeu a tocar violão nos anos 1970 (e muita gente fazia isto, é geracional), aprendeu canções de Taiguara. Talvez Carlos Alberto tenha tido maior contato com aquele cantor admirável, que tem como credencial ter mais de 60 músicas censuradas pela ditadura. Taiguara foi um ser político até a medula e o diretor do filme  faz um gesto político ao resgatar a biografia do cantor e, nela, valorizar os momentos em que as questões políticas estão mais fortes. A informação de que Taiguara, apenas para estar mais próximo da classe operária, em dado momento da vida foi morar no bairro paulista do Tatuapé, é bem ilustrativa de quem ele foi. Como pensava e como agia.

Taiguara no palanque ‘Diretas Já’ – Foto Orlando Brito

O  documentário  assume seu descompromisso com  a estética (as cartelas com textos são rudimentares)  e com formatos mais comerciais, afinal, este não é um projeto de mercado. Não poderá ser exibido  comercialmente, pois não possui os direitos de músicas e imagens.

Com mais de duas horas de duração,  poderia ser mais enxuto, principalmente quanto aos trechos de filmes (ruins) que o galã Taiguara acabou fazendo no auge do sucesso. Mas mesmo o pouco interesse nestes trechos não faz da experiência algo menor, até porque  estes longos trechos contextualizam a cultura da época, o tipo de filme popular que era produzido, como funcionava a engrenagem do star system das gravadoras e como elas, poderosas economicamente, eram subservientes ao regime espúrio.

Ver aqueles filmes cafonas e ingênuos (para os padrões de hoje) nos permite um mergulho num tempo em que o Brasil vivia a ditadura civil-militar. E um dos momentos mais impactantes é Taiguara contando de sua estupefação ao ver os estudantes de  Direito da USP armados na faculdade. Armados! A estupefação de Taiguara nos impacta mais porque no contexto atual temos uma população civil que está armada, que quer se armar mais, num teatro do absurdo que torna as palavras de Taiguara ainda mais fortes e atuais.

O irmão Araguari, a mãe Olga e Taiguara

Falando assim, parece que Taiguara  foi muitas pessoas, parece que temos  várias biografias em uma só. E ele morreu com 50 anos! Como um Fassbinder furioso,  viveu com intensidade cada minuto. E transbordava felicidade cantando, traço que Carlos Alberto valoriza na montagem.  Em método jornalístico, o diretor também não deixa de informar dados biográficos como este da morte precoce. E é lauto nas cenas com entrevistas com o próprio Taiguara, que foi apaixonante ao cantar e ao falar. Contava (longas)  histórias nos shows e vale até voltar e ver  mais de uma vez o momento de um show para a televisão (Band?), em que relata seu diálogo bizarro com dois censores, imitando cada um. Impagável.

A música, claro, é o elemento que dá liga a todas as histórias e provoca êxtase pela voz soberba de Taiguara. E impressiona, para além da qualidade musical,  o nível de consciência de Taiguara quanto ao que aconteceu com ele na época dos festivais, em que se tornou cantor romântico. Ficou preso neste rótulo. Carlos Alberto, até por certamente não ter imagem destas falas, cria uma cartela sobre fundo-preto alertando: “Uma história que merece ser ouvida”. São alguns minutos da cartela, que não nos distraem, que nos obrigam a de fato ouvir a história da vaia que Taiguara leva ao tentar quebrar a imagem de cantor romântico.

Também ouvimos com atenção a afirmação dele rememorando sua fase de festivais: “eu não podia admitir que a minha vitória fosse a derrota de alguém.”

Provavelmente o “recorte” no material organizado, que claramente opta pelo Taiguara político neste filme-tributo, é um tanto inescapável. Taiguara era político. Até ao paroxismo, chegando ao ponto de ser enfadonho ao, num show, falar tanto que a plateia pediu para que cantasse. Com Gonzaguinha também foi assim, com Bob Dylan idem…

Com Beth Carvalho e Prestes na Cinelândia, Rio de Janeiro, anos 1980

Taiguara adoraria ver o gesto de guerrilha do fã Carlos Alberto Mattos. Um trabalho empenhado, generoso, e um passo importante para que produtores mais “orçamentados” se interessem por esta figura absolutamente ímpar da música brasileira. O vídeo de Carlinhos pode ser despretensioso, mas a história de vida do seu biografado é comovente.

Deu até vontade de conhecer a igreja em que Taiguara, nascido no Uruguai, foi batizado em Porto Alegre. No caminho, ouvindo “A Grande Ausente”,  Universo no teu corpo”, “Hoje” …

Aliás, não está no doc de Carlos Alberto,  mas está no YouTube um vídeo com um dos filhos de Taiguara, Lenine Guarani, cantando “Hoje” (veja aqui). É a cara e a voz do pai, mas pelo jeito a verve política se perdeu.

A plataforma  Vimeo abriga a video-montagem de Carlos Alberto Mattos, Taiguara – Onde Andará teu Sabiá?

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