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Críticas

Andança: Encontros e Memórias de Beth Carvalho

A Madrinha do Samba, por ela mesma, mas pelas mãos de um hercúleo trabalho de montagem de Pedro Bronz

Por Luiz Joaquim | 08.02.2023 (quarta-feira)

Quarentões e mais velhos devem lembrar de uma notícia inusitada de 1997. A de que Coisinha do pai, composição de Almir Guineto, Luiz Carlos da Vila, Jorge Aragão e sucesso mundial na voz de Beth Carvalho (1946-2019) tocou, naquele ano, em Marte.

A façanha foi feita pela Nasa, claro, a partir da escolha da engenheira aeroespacial brasileira Jacqueline Lyra, que integrava a equipe da missão encarregada de ‘despertar’ o robô Sojourney no Planeta Vermelho. A versão lá reproduzida foi a cantada por Elba Ramalho e Jair Rodrigues.

Mas ninguém duvida de qual versão da música foi a imortalizada. Beth Carvalho não apenas deu a voz definitiva para o samba, ela foi a reveladora, incentivadora, madrinha, amiga e tudo o mais que se possa imaginar de generoso para os seus compositores.

Atuou como um canal para o mundo entre aqueles e dezenas de outros, artistas da palavra cantada, humildes e talentosos, próprios das comunidades pobres e do subúrbio carioca.

Em cartaz no Brasil desde o dia 2, e entrando em cartaz no Recife nesta quinta-feira (9), o documentário Andança: Os encontros e as memórias de Beth Carvalho (Bra., 2023), de Pedro Bronz e produzido por Roberto Berliner e Leo Ribeiro (da TvZero), ressalta, particularmente, este ponto.

O da moça que nos anos 1960 se encantou pelo violão de João Gilberto, tomando gosto pelo instrumento, fazendo-a ganhar o 3º lugar no Festival Internacional da Canção com a música Andança (composição de Edmundo Souto, Danillo Caymmi e Paulinho Tapajós).

Andança perdeu apenas para dois outros monumentos da canção brasileira: Pra não dizer que não falei das flores e Sabiá.

O elitismo (palavras de Beth) da Bossa Nova, no entanto, não lhe apetecia tanto quanto colocar o pé no morro, nas rodas de samba tradicionais, e foi assim que ela ajudou a fazer brilhar o talento de tantos artistas do morro.

Pedro Bronz, que contou com o roteiro de Leonardo Bruno – também autor do livro Beth Carvalho: De pé no chão (Editora Cobogó) -, se apropriou para o seu documentário de um impressionante acervo audiovisual da própria da cinebiografada.

Em Andança, o filme, o que temos é uma costura de imagens de arquivos com cerca de 2 mil horas, fruto de 800 fitas VHS, realizadas por Beth Carvalho ou pelo seu motorista, ‘faz-tudo’ e também cinegrafista amador, Antônio Carlos.

A ‘cineasta’ Beth Carvalho grava imagem do jovem Zeca Pagodinho

Nesse sentido, nessa costura de imagens – também nos formatos Super-8, Mini-DV, fotografias além de fitas cassetes de áudio – temos aqui um documentário mais ‘devedor’ à labuta da montagem que, no caso, é assinada também por Bronz.

Pela perspectiva plástica, Andança, em seus 110 minutos, mostra-se um tanto carregado, cansativo mesmo, pela predominância dessas imagens amadoras de arquivo eletrônico. Não apenas pela limitação da qualidade em sua resolução, mas também pelo descuido de enquadramento compreensível em registros dessa natureza.

Ainda que a maioria do material escolhido seja de cuidadoso trato no enquadramento, ele é limitado em si. Assim, o que o tornaria precioso (o inusitado e raro da imagem bruta e rara) pode virar, aqui, redundante e, talvez para alguns, até fatigante.

Beth e o gigante Nelson Cavaquinho, crédito da foto: Ivan Klingen

Por outro lado, o trabalho de Bronz deixa claro como água a importância de Beth Carvalho para a música popular brasileira, para o samba para o pagode. São tocantes os depoimentos tanto de monstros sagrados como Nelson Cavaquinho e Cartola dados a Beth nos anos 1970, quanto de jovens sambistas e pagodeiros do ‘Fundo de Quintal’, oriundos do bloco carnavalesco Cacique de Ramos, no Rio de Janeiro.

Estamos falando aqui de nomes hoje celebrados como Jorge Aragão, Almir Guineto e Sereno. Nomes que, provavelmente, não conheceríamos. Assim como Zeca Pagodinho, que teve seu primeiro samba, Camarão que dorme a onda leva (1983, com Arlindo Cruz e Beto sem Braço), gravado a convite de Beth Carvalho.

Para os fãs da artista, não há dúvida. Andança, o filme, é um presente. São cerca de 50 canções espalhadas ao longo do filme, ou melhor, contextualizadas ao longo do filme, possibilitando esse mesmo fã entender o que movia a intérprete, com o seu perfeccionismo nos estúdios e fome pela, como ela dizia, brasilidade e negritude na música feita por aqui.

Importante o destaque que Pedro Bronz também dá ao perfil de consciência política da artista. “As pessoas separam a cidadã da artista, mas eu também sou cidadã. Tenho que ter cuidado com o que falo, mas preciso falar”, escutamos em off enquanto a vemos levantar a voz das multidões nos comícios pelas Diretas Já em 1984.

Beth, ao lado de lideranças políticas, em SP, nos comícios das Diretas Já

É uma bela lição da Madrinha do Samba para uma nova geração de artistas mudos/as diante da calamidade de um governo federal, como o da gestão 2019-2022, que levou o país ao fundo do poço da dignidade política e humana.

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