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Festivais

26a. Tiradentes (2023) – “A Vida São Dois Dias”

A chave de fascínio a partir do conflito entre o popular e o erudito

Por Marcelo Ikeda | 29.01.2023 (domingo)

Se Tiago A. Neves apresentou uma comédia rasgada que aborda os desafios em superar o luto, por incrível que possa parecer a quem assistiu aos dois filmes, não é muito diferente o desejo de Leonardo Mouramateus em A vida são dois dias. No entanto, no caso de Mouramateus, esse jovem cineasta oriundo da Maraponga, periferia de Fortaleza, que teve uma carreira meteórica com seus curtas, e se refugiou em Lisboa, essa comédia rasgada não é propriamente popular mas erudita. Ou, se pudermos nos expressar melhor, é justamente desse conflito entre o popular e o erudito que surge a chave de fascínio ou de estranhamento que emana desse filme misterioso. Um amigo, ao final da sessão, disse que o filme é uma tentativa esmerada de produzir uma comédia que ninguém ri.

Ou ainda, colocando em outros termos, o próprio Mouramateus costuma dizer, a respeito de seu longa anterior, António um dois três, que os brasileiros viam seu filme como português demais, e os portugueses, como brasileiro demais, de modo que o filme nem era brasileiro nem português. E o que ele seria, então? Talvez o filme venha desse lugar encantado chamado Cinema.

Busco, então, me aproximar desse filme a partir do estranhamento causado a partir do conflito, ou ainda, desse lugar-estrangeiro, a partir de uma relação de trânsito mas que também é inventada pelo próprio cinema. É tentador relacionar esse desejo transidio do filme com a própria trajetória pessoal do realizador, não apenas porque o filme se espraia entre Fortaleza e Lisboa (com passagens pelo Rio), mas também porque ele é repleto de experiências afetivas do realizador, começando por montar uma equipe (técnica e de elenco) bastante heterogênea mas repleta de seus amigos pessoais. Entre outras sutilezas, talvez mereça destaque uma pequena participação da grande realizadora Rita Azevedo Gomes, um gesto delicado e curioso, uma vez que o próprio Mouramateus já havia feito uma participação em A Portuguesa, dirigido por Azevedo Gomes.

Mas gostaria de voltar a esse clima de estranhamento-estrageiro a partir desses conflitos. Outra forma de vê-lo é também por meio das encruzilhadas e bifurcações entre a literatura e o cinema. Assim como Antonio um dois três, o novo filme de Mouramateus é também uma espécie de jogo formal literário sobre a criação (não à toa entre os dois irmãos, há um romance a ser publicado, e suas diferentes versões). É por meio de um jogo de quebra-cabeças entrecortado por suas relações formais que o cinema e a literatura, o Brasil e Portugal, o popular e o erudito, se fundem nesse filme como uma dança-música jovem contemporânea (afinal, todo filme de Mouramateus precisa ter alguém dançando rs).

Ao mesmo tempo, sinto que todo o tom jocoso, relaxado, jovem e cool do filme é expresso por meio de um estilo formal extremamente consciente e marcado de cada um dos seus passos e de seus gestos – e, às vezes, chego a questionar se não seria excessivamente marcado demais. Não sei se exagero, mas sinto haver algo de Ozu nesse desejo em arquitetar uma crônica da amizade jovem, e buscar um respiro poético do prosaico, mesmo em torno de todas as possíveis reviravoltas (quase parodiando uma novela sobre Princesa Isabel) da trama, e balizá-las a partir de um expressivo rigor formal.

Coroando todas essas possíveis reflexões sobre a ideia do duplo, surgem como protagonistas esses dois irmãos gêmeos. Esses dois irmãos, que acabam se reencontrando e fazendo as pazes no meio das circunstâncias. A solar personagem de Mariah Teixeira funciona como intermediadora, mas sinto que esses dois irmãos são as duas metades que não se fundem perfeitamente nessa comédia insólita, quase uma screwball comedy filmada por um cineasta português como Oliveira, ou mesmo como Ozu. Ou como Eugène Green, também um estrangeiro que filmou em Portugal. Sinto ser belo esse gesto de os dois irmãos se reabraçarem afinal, por meio do atravessamento de um livro, e que essa mistura insólita só poderia acontecer numa cidade tão improvável quanto Fortaleza. Adoro o modo do despertar do irmão adormecido por meio do humor, da ingenuidade – acho o momento mais belo do filme. E a cartela final me fez imaginar que, de algum modo, Mouramateus fez, ao seu jeito, uma homenagem a Me and my brother, de Robert Frank.

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