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Críticas

Aftersun

Uma busca por si próprio pelo embaralhamento dos sentimentos e das imagens

Por Luiz Joaquim | 18.01.2023 (quarta-feira)

São sempre muito embaralhadas as memórias de qualquer pessoa sobre sua primeira infância. Em algumas pessoas, o embaralhamento inclui a segunda infância também. Um dos momentos mais marcantes em Sempre em frente (2021), lançado no Brasil em fevereiro do ano passado, mostra Johnny (Joachin Phoenix) alertando o sobrinho Jesse, de 9 anos – de quem cuidou por semanas enquanto a mãe precisou se ausentar – de que o menino não se lembrará de quase nada daquilo quando for adulto.

Em Aftersun (Idem, Reino Unido/EUA, 2022), filme de Charlotte Wells em cartaz nos cinemas desde dezembro do ano passado e disponível pelo streaming Mubi desde 6 de janeiro, acompanhamos a perspectiva de mundo dividida entre a de outra criança, Sophie (Frankie Corio), com a do seu pai Calum (Paul Mescal) – além da perspectiva também da própria Sophie, 20 anos mais velha (Celia Rowlson-Hall).

Tudo bem que a pequena Sophie está, no filme, com recém-completos 11 anos, entrando na puberdade, mas é, ainda assim, provável que no futuro suas memórias sejam borradas, ou apenas incertas, a respeito daquelas férias que ela aproveitou com o pai, Calum (prestes a completar 30 anos), num resort decadente da Turquia no final dos anos 1990.

Pai e filha procuram se divertir num modesto resort na Turquia.

Premiado e celebrado em todo o mundo como uma das melhores coisas que o cinema nos deu em 2022, Aftersun prova isso com a sua inteligência cinematográfica.

A própria abertura do filme, já nos créditos cobertos pelo áudio de ruídos da engrenagem de uma pequena filmadora Camcorder, e seguidos pelas imagens ininteligivelmente quadriculadas graças a limitação tecnológica da época ao retroceder e avançar as imagens de vídeo, mostram uma fluência entre a ideia e a forma nessa obra que quer buscar um (re)encontro, ou (re)conhecimento, entre a filha adulta e um pai já ausente.

O embaralhamento visual (pareado com o embaralhamento da memória da Sophie adulta) não é apenas desenvolvido na plástica do filme, é também primorosamente trabalhado em sua edição e em seus enquadramentos.

Com o enredo que nos coloca cronologicamente ao lado de Calum e da pequena Sophia, por poucos dias, nesse ambiente isolado da vida real e cercado pelo ócio ao lado dos mais diversos turistas, conhecemos o jovem e carinhoso pai, com o seu interesse pela meditação, pelo Tai Chi Chuan e pela dança, e conhecemos a encantadora filha, entrando na puberdade e atenta aos mistérios da sexualidade, que desfilam a todo tempo na sua frente, ali na piscina do resort, quando outros jovens namoram.

Entre as tensões e alegrias do pai com a filha naquelas férias, temos brevíssimas inserções de imagens de uma mulher adulta sob a luz estroboscópica de uma boate que nos desloca daquele tempo e daquele lugar. Só mesmo ao final de Aftersun, as tais imagens ganham sentido e conexão com o passado da pequena Sophie.

Para tanto, Charlotte Wells cobre a sequência com a música Under pressure, do Queen, acompanhada também pelo vocal de David Bowie, o que só reforça aquilo que apenas o espectador já descobriu sobre Calum naquelas preciosas férias na Turquia.

Sophie (Corio) em mais uma das férias com o pai Calum (Mescal) que vive um momento decisivo entre o presente e o futuro da filha

No que diz respeito aos enquadramentos (além dos quadriculados do início do filme), podemos, em apenas um dos planos de Aftersun, desdobrar um outro conceito visual para a ideia do embaralhamento.

Acontece quando, no quarto do hotel, a pequena Sophie brinca com a câmera portátil de Calum apontando-a para o seu pai enquanto pergunta o que ele imaginava, aos 11 anos, o que gostaria de ser quando tivesse a idade que tem naquele momento.

Não temos Sophie no plano, e Calum nos é mostrado pela tela da pequena tevê do quarto, que está conectada à filmadora. No mesmo plano, ao lado da tevê, os livros de Calum empilhados, com os títulos nas lombadas nos dando mais dicas sobre seu personagem. E isso não é tudo.

Por trás dos livros há um estreito espaço do qual percebemos um espelho. Para responder a delicada pergunta feita pela filha, Calum pede que Sophie desligue a câmera. Ao desliga-la, não temos mais a imagem do pai na transmissão para a tevê, mas ganhamos o reflexo de Sophie no monitor desligado da mesma. E, mais, voltamos a ter Calum nesse mesmo plano fixo quando ele se posiciona perto de Sophie para responder a pergunta e, daí, podemos enxergá-lo novamente, mas apenas pela estreita faixa do espelho na parede.

É gigantesco, e emblemático, o volume de informações nesse mesmo plano. Sua riqueza só aumenta também a ideia de que Aftersun é um filme a ser visto no cinema, para podermos fazer a sua precisa digestão. Só numa tela gigantesca e com o enclausuramento que exige o auditório escuro de uma sala assim iremos (1) fazer nossos olhos correrem para onde quisermos, no tempo que quisermos, num plano como o mencionado – e assim sermos coautores na narrativa desse plano único –, e (2) só esquecidos da vida, numa sala de cinema, talvez nos permitamos vivenciar (vivenciar, repito, e não ‘entender’) alguns dos “tempos mortos” nas férias de Calum e Sophie para, daí sim, compreendermos as sutilezas das descobertas entre pai e filha naquele encontro e (re)encontro da Sophie adulta.

Um sala de cinema deve provocar uma melhor imersão no ritmo do filme

Para quem curte títulos, bom saber que Aftersun foi votado como ‘Filme do Ano’ pela IndieWire, The Guardian, Sight & Sound. Foi também vencedor do Prêmio French Touch do Júri na Semana da Crítica do Festival de Cannes de 2022 e de sete prêmios no British Independent Film Awards.

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