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Festivais

33º Ceará (2023) – “O Castigo” e quatro curtas

Como um espelho reverso de “Eles Voltam”, de Marcelo Lordello, o chileno “O Castigo” impacta o Cine Ceará

Por Luiz Joaquim | 29.11.2023 (quarta-feira)

– acima, cena de O castigo

FORTALEZA (CE) – A noite de ontem (29), a quarta da mostra competitiva deste 33º Cine Ceará: Festival Ibero-americano de Cinema, foi, inquestionavelmente, a mais interessante em termos de oferta entre curtas e longas-metragens.

Cada um a seu modo, os quatro curtas apresentados mostraram qualidades (e ‘senões’) particulares.

Antes, uma emocionante homenagem ao ator Ailton Graça foi promovida pelo festival no palco do Cine São Luiz. Graça, cujo sobrenome que é historicamente motivo de boa brincadeira, já havia nos iluminado na tarde de ontem com o seu pensamento claro e engajado sobre o mundo da arte e sobre políticas públicas para ações tendo como alvo a consciência negra (leia em breve no CinemaEscrito a entrevista com Ailton Graça).

Ailton Graça homenageado no cine São Luiz

No palco do São Luiz, Graça se emocionou ao recordar da mãe que partiu para “o mundo encantado” antes de ver a ascensão do filho como artista. “Eu havia feito diversos trabalhos só para pagar as contas e naquele momento estava voltando para o teatro. Ele me disse: ‘meu filho, você está de volta a sua casa. Nunca mais deixe essa casa”, lembrou, choroso.

CURTAS-METRAGENS – O primeiro título veio da Bahia. A bata do milho, de Eduardo Liron e Renata Mattar, impressionou como um documentário que parecia adormecido por 70 ou 60 anos e só agora tenha ganhado vida para o mundo. A produção, que olha para a prática dos trabalhadores rurais em Serra Preta (BA), cantando enquanto cultivam o milho, é de 2023, mas guarda um aspecto, e não apenas temático, de teor etnográfico próprio dos títulos nordestinos da década dos 1950 e 1960. É bonito em sua simplicidade e é revelador e comovente naquilo que nos apresenta.

Cena de “Bata de Milho”

O título mais redondo da noite veio do Pará, Cabana, de Adriana de Faria, dramatizando uma situação na Revolta da Cabanagem, em 1835 naquela região amazônica. No enredo, a personagem Maria Lira busca a principal referência feminina histórica da cabanagem, Margarida, para ajudá-la contra a então opressão portuguesa.

Cabana já é atraente pelo tema, pela performance das atrizes e pela fotografia. Como se não bastasse, Adriana incrementa uma estratégia simples mas de uma eficácia brilhante que nos faz abrir ainda mais os olhos para o silenciamento das mulheres pretas: nós não escutamos nenhum dos diálogos entre Maria Lira e Margarida.

Entendemos, entretanto, o conteúdo das conversas por legendas. Só num salto para o futuro, para o hoje, é que conseguimos escutar o desabafo libertador de Maria Lira, com uma bebê (o futuro) no colo, mas sem esconder que, mesmo quase dois séculos depois, estas mulheres seguem sendo silenciadas.

Imagem de “A Cabana˜

Da periferia de Curitiba, mais precisamente da chamada Cidade Industrial de Curitiba (CIC), veio Bença, de Mano Cappu. O realizador colocou no filme uma experiência pessoal retratando o encontro inusitado entre pai e filho na cadeia.

Bença destacasse por pôr em foco um lado afetuoso no ambiente carcerário, entre os detentos, quando apresenta as sutilezas dos conflitos e relações de dois grupos geracionais ali confinados.

O programa encerrou com o paulista A sombra da terra, no qual Marcelo Domingues mescla animação e live action para contar a fabular história de uma pianista (Andréia Nhur) que numa noite chuvosa recebe um andarilho (Paulo Betti) dizendo-se vítima de uma maldição da lua pela qual ele tornou-se um receptáculo de todos as dores da humanidade.

Em entrevista coletiva na manhã de hoje (29), Domingues conta que o projeto integra outro maior, de um longa-metragem a ser composto por diversas histórias que ocorrem na mesma casa, em épocas e com personagens diferentes.

Embalada pela Sonata ao luar, de Beethoven, o realizador citou Krzysztof  Kieslowski como referência, ao qual seu curta faz citação direta à cena da dança da marionete em A dupla vida de Véronique. “Queríamos que o [Zbigniew] Preisner fizesse nossa trilha sonora, mas não tínhamos dinheiro pra isso, daí apresentamos o trabalho dele para o Bruno Albanez, responsável pela nossa trilha, e pedimos para seguir aquele conceito”, contou Domingues.

CHILE – O longa-metragem competitivo – O castigo (El Castigo) veio do Chile sob a direção de Matias Bize a frente deste que é o seu quinto longa. Protagonizado por duas referências do cinema chileno, Antônia Zergues e Néstor Cantillana, eles vivem esposa e marido que punem Lucas, seu filho de 7 anos, deixando-o sozinho na estrada para aprender a se comportar e aceitar o “não” dos pais.

Curioso como, de partida, logo em seus primeiros minutos, O castigo se anuncia como um espelho para Eles voltam (2012), de Marcelo Lordello. O chileno seria o que está do outro lado do espelho que reflete o filme pernambucano, ou seja, nós acompanhamos o martírio não da criança deixado na estrada, mas sim dos pais que se dão conta, ao voltar para busca-la, que ela não está mais lá.

O ponto de partida de O castigo é, por si só, angustiante mas a coisa melhora quando vamos percebendo que tudo se desenrola em tempo real. Em outras palavras, todas situações durante os 86 minutos de filme são apresentadas num único e gigante plano-sequência que põe em prova a habitual peripécia técnica, criativa e interpretativa que consiste rascunhar algo tão necessariamente bem ensaiado.

A questão é que em alguns momentos, são poucos, é verdade, a técnica chama mais atenção que a trama, que o drama. Ainda assim, temos uma atuação impecável de Zergues (que deverá levar o prêmio de melhor atriz por aqui) e de Cantillana, sob a direção cuidados de Bize com um roteiro de Coral Cruz. Um texto corajoso que joga questões sobre a maternidade duras de ouvir, mas que sabemos ser uma realidade dolorosa, mas silenciosa, para muitas mães.

– viagem a convite do festival

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