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Críticas

F1 – O Filme

Mais showroom do que filme, mais publicidade do que cinema.

Por Yuri Lins | 26.06.2025 (quinta-feira)

Entre todas as modalidades do automobilismo, nenhuma soube flertar tão intensamente com o imaginário do espetáculo quanto a Fórmula 1 — transformando velocidade em desejo, engenharia em prestígio e competição em marca. Nos anos 1980 e 1990, esse universo consolidou-se como sinônimo de glamour, risco e sofisticação. Com o tempo, porém, esse brilho começou a se desgastar: a audiência encolheu, o interesse entre os mais jovens diminuiu e foi preciso buscar novas estratégias de reposicionamento no mercado do entretenimento. Parte desse movimento passa, agora, por F1 – O Filme (EUA, 2025), estrelado por Brad Pitt e dirigido por Joseph Kosinski. Não por acaso, Kosinski vem do sucesso de Top Gun: Maverick (2022), outro projeto que revisita uma franquia dos anos 1980 apostando na imersão sensorial como argumento central. Se, em Maverick, o desafio era transportar o espectador para dentro da cabine de um caça, aqui a ambição é oferecer uma experiência equivalente na pista, colocando o público dentro de um carro de Fórmula 1 em plena corrida. F1 – O Filme, antes de qualquer coisa, se apresenta como um tour de force técnico — uma declaração sobre o que o blockbuster contemporâneo ainda pode ser quando aposta no rigor artesanal da captação real, na fisicalidade da imagem e na potência material do cinema. Um gesto que, ao menos em tese, o coloca em oposição à estética amorfa das grandes franquias de super-heróis.

Muito embora o projeto se organize em torno de um espetáculo técnico — e ainda que estejamos no campo do cinema, e não de um videogame ou de um parque de diversões —, era necessário construir uma narrativa capaz de dar forma e sentido a essa ambição. Nesse contexto, o roteiro de F1 – O Filme é assumidamente simples. Brad Pitt interpreta Sonny Hayes, um ex-piloto que abandonou as pistas nos anos 1990 após um acidente que encerrou precocemente sua carreira. Anos depois, ele é convocado por Ruben (Javier Bardem), chefe da APXGP — equipe fictícia que ocupa as últimas posições no grid — para retornar às corridas. Hayes volta não apenas como uma jogada de marketing, mas como segundo piloto da equipe, com a missão de ajudar a desenvolver o carro e, sobretudo, orientar Joshua Pearce (Damson Idris), jovem promessa do time: talentoso, impulsivo e pressionado pela própria inexperiência. A estrutura narrativa se apoia nesse arco clássico de transmissão entre gerações, atravessado por conflitos previsíveis de orgulho, ego e senso de coletividade. Mas o filme é também — ou quer ser — sobre a ressurreição de um herói: alguém que retorna ao cenário que o marcou, e que, com sua experiência acumulada, oferece as respostas que faltam aos mais jovens, enquanto tenta, no íntimo, reencontrar a si mesmo. Hayes volta às pistas para trazer novas vitórias, sim — mas também para reconciliar-se com o passado. No fundo, a dramaturgia cumpre sua função: serve como chassis para que o verdadeiro motor do filme — a construção sensorial da velocidade, do risco e do corpo na máquina — possa operar em pleno desempenho.

A promessa: colocar o espectador dentro do carro, sentir o asfalto, o ruído e a velocidade — mais impacto do que significado.

Ainda que a experiência cinematográfica proposta por F1 – O Filme —  imersiva, expansiva, ocupando cada centímetro de uma tela IMAX — seja, num primeiro momento, capaz de desorientar nossos sentidos e de gerar um deslumbramento imediato, é preciso observar como essa imersão se constrói, muitas vezes, pelo caminho mais fácil. E, aqui, vale analisar dois movimentos formais muito claros no filme. O primeiro, evidentemente, diz respeito às sequências de corrida, que são, afinal, o coração dramático do projeto. É nelas que os conflitos se intensificam, que as estratégias se desenham, que os personagens se enfrentam e se afirmam. O que chama atenção, no entanto, é que essas sequências — que, em tese, deveriam ser um exercício pleno de linguagem cinematográfica — são, o tempo todo, atravessadas por uma narração externa que assume o tom e o formato da transmissão televisiva. Durante as corridas, ouvimos os locutores explicando cada movimento, cada ultrapassagem, cada mudança de estratégia, como se a articulação visual e sonora por si só não fosse capaz de construir o sentido. A consequência disso é que a encenação não se organiza como uma dramaturgia do espaço e do movimento, mas como um acúmulo sensorial: cortes rápidos, planos curtos, uma sucessão de impressões visuais que ganham inteligibilidade, sobretudo, pelo discurso verbal que se sobrepõe às imagens. Há, portanto, uma recusa — consciente ou não — de enfrentar a corrida como um problema de linguagem cinematográfica, delegando ao texto falado a função de garantir clareza onde a mise-en-scène poderia, ela própria, resolver. Para um filme que se vende como um expoente da técnica, é irônico notar o quanto ele ainda depende desesperadamente da palavra para se fazer entender.

O estrionismo formal não se limita às cenas de corrida. O filme reproduz exatamente a mesma lógica na encenação e na montagem das cenas de relação entre os personagens. Kosinski parece incapaz — ou desinteressado — de oferecer qualquer tipo de respiro às dinâmicas dramáticas. O mesmo método de edição, marcado por cortes extremamente rápidos e planos curtíssimos, é aplicado também às conversas, aos embates, às trocas de olhares. É um filme que não permite que nos fixemos em um rosto, em uma inflexão de voz, em um silêncio — e, de fato, Fórmula 1 é praticamente um filme sem silêncio. O que se propõe, aqui, é uma transposição direta da lógica das pistas para os bastidores: como se a pressão, a urgência e o ritmo frenético das corridas contaminassem integralmente também a maneira como os personagens se relacionam, se confrontam e se constroem. Há, é verdade, uma ideia interessante por trás disso — a de que as entranhas da Fórmula 1, seus bastidores, sua engrenagem política e emocional, seriam tão impiedosamente acelerados quanto a própria competição. No entanto, o resultado dessa escolha é que o filme praticamente inviabiliza qualquer aproximação real com os personagens. Não há tempo para que possamos estar com eles. A cada corte, somos deslocados, expulsos, desviados. Acelerado ao limite, o filme parece esquecer que, para que o drama exista, é preciso, antes de tudo, permanência — olhar, escuta, espera e alguma solidão.

Entre pilotos famosos, logos e bastidores de luxo, o filme se dobra como vitrine da própria Fórmula 1

Seja nas relações entre os personagens, seja nas próprias corridas — que, por definição, já carregam um grau máximo de intensidade —, há ainda um outro vetor de sobrecarga: a linguagem do filme se organiza, quase integralmente, como uma grande publicidade. Não se trata exatamente de um parque de diversões, nem de um videogame — é mais do que isso. É uma peça institucional. Uma vitrine. Uma celebração ostensiva da Fórmula 1 enquanto marca, enquanto máquina de espetáculo global. A todo momento, a dramaturgia é atravessada por uma cacofonia de elementos — trilhas grandiosas, músicas empilhadas, imagens aéreas que funcionam como vinhetas promocionais, takes de bastidores que reiteram o luxo, a sofisticação, o maquinário, os boxes, os logos, os corredores. Figuras como Lewis Hamilton, Max Verstappen e outros pilotos reais circulam pela diegese não exatamente como personagens, mas como selos de autenticidade, como garantias de pertencimento a esse universo, como se o filme precisasse constantemente se reafirmar como um produto fecundado pela própria Fórmula 1. Por vezes, a sensação é que antes de ser um filme sobre personagens em conflito, sobre alguém que retorna às pistas, ou mesmo sobre uma corrida específica, F1 se dedica, prioritariamente, a ser uma espécie de showroom: uma exposição permanente do que é, do que representa e de como funciona a instituição Fórmula 1. É como se o briefing entregue a Kosinski dissesse, antes de tudo, que o filme não deveria apenas contar uma história, mas ostentar, em cada quadro, a pujança e o fascínio desse ecossistema. Nesse processo, drama e ação se confundem — e o cinema, como arte, acaba sendo deixado de lado.

Diante dessa ostentação visual e técnica que Kosinski oferece, é inevitável lembrar de cineastas que, nos últimos anos, também se debruçaram sobre o universo das corridas, como James Mangold em Ford vs Ferrari e Michael Mann em Ferrari. Ambos, embora especialistas na criação de cenas automobilísticas intensas, investem antes de tudo no drama humano que pulsa por trás do volante. Eles traduzem, de maneira quase poética, aquela noção física essencial: para o piloto, a percepção do tempo se dilata, a velocidade externa contrasta com uma consciência interna ampliada — um espaço onde o homem se confronta com seus próprios limites, se funde à máquina e ao horizonte em movimento, encontrando ali uma rara harmonia. Essa dialética entre o caos do espetáculo e a quietude da experiência interior não é apenas tema, mas princípio formal, sustentando a força sensorial e emocional de seus protagonistas.

Nos bastidores, as relações correm no mesmo ritmo da pista: rápidas, ruidosas e sem espaço para profundidade

Kosinski, por sua vez, parece pouco interessado nessa sutileza. Há, sim, um momento em que o filme ensaia buscar essa harmonia — quando a narrativa flerta com a possibilidade de que o ato de pilotar transcenda a própria competição, assumindo uma dimensão mais subjetiva, quase espiritual. No caso do personagem de Brad Pitt, sua vontade de retornar às grandes pistas se move, também, pela busca desse estado de fusão entre corpo, máquina e paisagem — uma forma de redenção pessoal, um gesto em que, metaforicamente, se “voa” sobre o asfalto. Mas mesmo ali, esse desejo nunca se traduz efetivamente em experiência. E não por acaso: é o desdobramento natural de um filme que, como já se explicitou nos parágrafos anteriores, constrói suas relações sempre de modo superficial, mais como enunciado do que como vivência. Um cinema que se contenta em declarar, mas que raramente se dispõe a fazer sentir — a não ser pela via da atrofia formal, da sobreposição acumulativa de estímulos, da desorientação sensorial, do texto que se impõe para explicar aquilo que, em última instância, deveria ser percebido, experimentado, vivido. Mas que não nos enganemos: essas são dimensões que só se alcançam através de um trato realmente rigoroso com a forma cinematográfica — com sua geometria, com seu ritmo, com seu artesanato verdadeiro.

F1 – O Filme é um grande espetáculo que, mais do que revelar, ludibria. Esconde suas fraquezas por trás de uma eloquência visual tão bem acabada que pode enganar o espectador mais desatento, fazendo-o acreditar que está diante de algo maior do que realmente é. Para quem busca uma serotonina cinematográfica um pouco mais refinada do que a oferecida pelos blockbusters padrão, talvez seja uma boa pedida. Mas, no fundo, parece que estamos sempre querendo menos, aceitando menos — essa sensação de que, no jogo do espetáculo contemporâneo, a aposta na superfície sempre vence sobre a substância. É sintomático que F1 – O Filme, com toda sua vacuidade disfarçada de grandiosidade, possa atrair mais público e faturar mais do que os trabalhos profundamente humanos e rigorosos de Mangold ou Mann. Isso não apenas expõe o fosso entre o que o cinema poderia ser e o que o mercado decide consumir, mas também confirma que, no fim das contas, F1 não é tão distinto daquilo que ele mesmo se propõe a superar. E assim, enquanto o relógio da corrida avança, o cinema desacelera — e nós continuamos presos na largada do que poderia ter sido.

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