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Críticas

Casa Grande

Aprendendo a caminhar sozinho

Por Luiz Joaquim | 15.04.2015 (quarta-feira)

“Casa Grande” é o melhor filme brasileiro que você verá nos cinemas em 2015. O quanto arriscado é iniciar uma texto avaliativo com uma assertiva como esta? Pouco, se consideramos que este primeiro longa-metragem de ficção dirigido pelo carioca Fellipe Barbosa é algo urgente a ser visto por todos. Em cartaz a partir de amanhã (16/04) no Brasil, “Casa Grande” trata, em poucas linhas, do amadurecimento como homem e ser social do adolescente Jean (Thales Cavalcanti), o primogênito da família abastada de Hugo (Marcello Novaes) que está em franca decadência financeira.

Desdobrando em mais e extensas linhas, o filme trata de uma gigantesca porta que se escancara para mostrar o quão nossa sociedade ainda vive sob a sombra de valores comuns ao início do século passado. Enquanto a primeira referência artística a ser vinculada ao filme é “Casa-Grande & Senzala” (1933), livro crucial de Gilberto Freyre sobre nossa formação cultural, a mais recente referência seria “O Som ao Redor” (2012), filme de Kleber Mendonça Filho, cuja câmera olha com a mesma desconfiança freyriana, pautada pelo medo sobre a nossa contemporânea, tensa e confusa vizinhança brasileira.

Guiado pela roteiro que construiu com Karen Sztajnberg e pela fotografia sempre precisa e elegante de Pedro Sotero (o mesmo de “O Som ao Redor”) – alias, vale registrar a importante presença de pernambucanos no filme; além de Sotero estão Amanda Gabriel (preparadora de elenco), Brenda da Mata (platô), Clarissa Pinheiro (atriz coadjuvante) e um trecho do filme “Tchau e Benção” (2009), de Daniel Bandeira -, o diretor Barbosa vai nos apresentando um universo pouco comum à maioria dos brasileiros, que é o da vida familiar do rico investidor burguês Hugo e como a atrapalhada administração de sua falência afeta a todos.

Esta apresentação se dá aos poucos, lenta e gradativamente para o espectador, mas com uma propriedade que empresta consistência como poucas vistas no cinema brasileiro contemporâneo, tão habituado a dedicar-se ao pobre, ao marginal, à classe média (e suas comédias), mas nunca aos ricos sem apelar à caricatura.

Já na inteligente e, portanto, bela cena de abertura, Fellipe sintetiza o que vem pela frente, deixando claro que está tratando não de uma família da classe-média, ou da classe-média alta, mas sim rica, muito embora precise economizar, a começar pela luz elétrica. Neste micro desenho social concentrado, que dividi-se entre a casa grande, a escola e a senzala, ou melhor, a casinha da empregada doméstica Rita (Pinheiro), para a qual Jean escapole vez por outra para resolver sua necessidade sexual, o filme dá espaço tanto a voz do rico quanto a do pobre.

A crise que se abate sobre a família de Jean o obriga a ir para escola de ônibus, algo inédito para ele. Jean tinha, há 15 anos – toda uma vida para um adolescente prestes a fazer o vestibular -, o motorista Severino (Gentil Cordeiro) sempre a seu serviço, a quem o garoto tem mais intimidade do que com o próprio pai para pedir conselho sobre mulheres. Mas Severino terá de ser dispensado.

Neste novo horizonte social que Jean acessa pelo transporte público, ele conhece Luiza (Bruna Amaya), uma garota morena, de família simples, por quem se apaixona. No percurso do envolvimento entre os dois, há o inevitável conflito familiar instigado por um tenso churrasco na casa de Hugo quando o assunto é cota racial para ingresso nas universidades. O racismo implícito, a propósito, transita livre aqui. Aparece em Hugo, quando concorda com as cotas, mas apenas pelo exemplo que os EUA dá neste assunto; ou nos amigos de Jean, que rechaçam uma menina negra numa boate rica.

Outra beleza vista no cuidado com o qual Fellipe constrói seu protagonista é que ele surge como uma espécie de tábula rasa, limpa. Jean é uma esponja que vê no pai um exemplo de virtude, sucesso e correção, nada mais natural na perspectiva de um filho, e por ele (pelo pai) vai guiando sua própria opinião. Mas não por muito tempo. Junto a Jean nos, espectadores, vamos testemunhando os sutis exemplos de preconceitos e confrontos entre personagens em posição confortável e não-confortável da nossa tão complexa têia social.

Coroando a sofisticada dramaturgia construída por Fellipe está seu elenco em absoluto conforto diante da câmera, com destaques inquestionáveis para Novaes e Pinheiro, ambos premiados ano passado como coadjuvantes no 6º Festival de Paulínia; passando por Amaya, caracterizada como “uma verdadeira fagulha de brilhantismo” pela prestigiosa revista americana “Variety”; e claro, pela presença quase constante de Cavalcanti na tela como Jean.

Ao final de seu trajeto em “Casa Grande”, Jean acaba por se tornar um homem – na fiel dignidade e auto-confiança pela correção que forma um homem -, sendo esta constituição mostrada pela câmera de Sotero num enquadramento admirável, que resume, sem precisar de palavras, a tranquilidade própria daquele que aprendeu a caminhar sozinho.

RECONHECIMENTO – Com 12 prêmios entre festivais nacionais e internacionais “Casa Grande” chamou a atenção em Paulínia, no Festival do Rio (melhor filme do júri popular); no Janela (melhor montagem); na Mostra de SP (prêmio oficial da crítica – Abraccine); no Panorama, em Salvador, (prêmio especial do Júri); além das exibições em Rotterdam, San Sebastian, Bafici, BFI London e em Toulouse, onde levou o prêmio do público e da crítIca francesa e crítica internacional Fipresci.

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