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Festivais

22a Tiradentes (2019) – “Tremor-Iê” & curtas

Proposição de uma revolução pela contravenção da linguagem numa “realidade” distópica

Por Luiz Joaquim | 23.01.2019 (quarta-feira)

acima, imagem de Tremor-Iê

TIRADENTES (MG) – O terceiro filme competitivo – de um total de sete – no programa “Aurora” foi projetado ontem (22) para uma Cine-tenda lotada na 22a Mostra de Cinema de Tiradentes. Veio do Ceará, com o título Tremor-Iê, e direção de Elena Meirelles e Lívia de Paiva.

Coletivo em diversos aspectos, o filme foi escrito a dez mãos, incluindo as de Deyse Mara, Lila M. Salú, Petrus de Barros e das duas diretoras; com todos(as) também no elenco.

O grupo criou aqui mais uma ficção cientifica cearense. “Mais uma” porque o Estado têm aparecido com bom volume de obras do gênero nos últimos anos, e elas são bem-vindas. A crítica pernambucana Carol Almeida, convidada da Mostra para debater Tremor-Iê hoje (23) pela manhã – o que fez com brilhante competência – também destacou essa peculiaridade, inclusive nominando alguns curtas-metragens: Boca de loba; Cartucho de super Nintendo em anéis de Saturno; e Antes da encanteria, do coletivo Chá das Cinco.

São títulos os quais a crítica se referiu como donos das imagens mais “delirantes” criadas pelo nosso cinema atual. Aproveitamos para incluir Medo do escuro, outro cearense já emblemático nesse campo, dirigido por Ivo Lopes Araújo e exibido na 18a Mostra de Tiradentes.

Tremor-Ié nos apresentam um futuro (futuro?) distópico. Nele, vivemos numa nação controlado pelo ditador Chico Cunha, não há polícia, mas há os “homens de bem” fardados, de branco (BRANCO, a direção de arte diz algo aqui), que fazem o mesmo serviço repressor da polícia contra os menos favorecidos dessa sociedade; ou seja, as negras, pobres, homossexuais. “Bom era no tempo da Xuxa”, diz melancolicamente, a certa altura uma personagem ao lembrar de Chico Cunha.

O fio condutor do enredo nos mostra a fuga de Janaína (Lila M. Salu) de seu calabouço numa prisão em Fortaleza, para onde foi jogada na ocasião de sua prisão por ter participado de uma manifestação em 2013.

De volta à rua, ela escuta palavras de ordem pautadas pela fé e patriotismo, e vê símbolos onipresentes do novo poder, reforçando que os “homens de bem” tem liberdade absoluta para fazer o que quiserem.

Ao reencontrar a amiga Cássia (Deyse Mara), Janaína toma pé na nova/velha repressão e ambas, reunidas com outras amigas, decidem roubas os restos mortais do Marechal Castelo Branco para, daí, barganhar a liberdade de outras presas políticas.

Parece unânime aqui em Tiradentes que o momento mais forte em Tremor-Iê está no reencontro de Janaína e Cássia, particularmente no diálogo formado pelos longos monólogos que cada uma delas profere; descrevendo seus perrengues derivados de autoridades violentas, as quais ambas foram vítimas – uma na prisão e a outra nas ruas – por causa de sua cor e/ou de sua orientação sexual. Perrengues que, claro, estão historicamente enraizados no stabelichment da cultural hegemônica branca.

Assim como em Seus ossos, seu olhos, filme de Caetano Gotardo exibido um dia antes, os dois monólogos do filme cearense têm força a partir do que nos conta (nos fazendo “enxergar” pela palavra), mas, aqui, eles têm ainda outros tipos de elementos ricos e próprios.

Um é a autenticidade do discurso, em sua forma e em sua origem, uma vez que ele, o discurso, vem da boca de Lila e Deyse, verdadeiras militantes da causa (é, portanto, autêntico); além do que, o que é dito é dito num linguajar raramente representado/reconhecível pelo cinema brasileiro.

O fato de termos acesso ao que é dito e como é dito pela boca dessas vítimas, faz desses monólogos algo muito especial no cinema. E especial é também a solução visual para como a cena é construída: na escuridão da madrugada, no quintal de uma casa suburbana, sob a luz tremulante de uma fogueira, ora revelando, ora escondendo o rosto, identidade dessas mulheres.

Novamente citando a fala de Almeida no debate de hoje, a crítica pernambucana fez uma bela relação desse contexto do filme com os estudos do escritor/pesquisador martinicano Patrick Chamoiseau. Ela explicou que para o pesquisador há, na literatura (seu campo de estudo), um imaginário dominado na linguagem. E a estratégia para minar isto é trabalhar com o próprio idioma a seu favor, ou seja, confundir seus leitores com a própria linguagem, apropriando-se em sua escrita de um idioma historicamente subjulgado para construir uma estratégia narrativa contraventora.

“O cinema também pode usar dessas estratégias”, arrematou Carol Almeida. E, nos parece, que é mesmo isso o que foi visto na sessão de Tremor-Ié.

CURTAS – No bloco 2 do programa “Foco”, quatro bons títulos foram exibidos nesta terça-feira (22). O depurado mineiro Malandro de ouro, de Flávio Von Sperling; o tocante paraibano Caetana, de Caio Bernardo; Estado de neblina, de Bruno Ramos; e o poeticamente político Ainda ontem, que veio das mãos de Jéssica Candal para redimir o estado do Paraná, ao falar de uma música simbólica sobre a Cidade Industrial de Curitiba (CIC).

Isabél Zuaa em “Malandro de Ouro”

Vale um pouco de mais destaque para os dois primeiros títulos.  Em Malandro… Sperling conseguiu uma precisão e concisão que merece reverência ao contar uma história de atração, traição e punição com ares sobrenaturais e, encontrando ainda espaço para ressaltar valores de gênero e etnia. Destaque ainda para a performance do casal protagonista, Robson Vieira e Isabél Zuaa, esta com sua presença hipnótica tão bem captada pela fotografia de Gabriel Martins (co-assinando ainda a edição com Sperling).

Em Caetana, uma tragédia é contada pelo minimalismo dos detalhes. O iniciante diretor e roteirista Bernardo mostrou uma segurança perturbadora nos planos e encadeamentos que escolheu para contar a história do jovem que volta à sua terra natal.

Fora do programa “Foco”, a terça-feira também viu projetar em Tiradentes, na “Mostra Praça”, a estreia dos goianos críticos de cinema Fabrício Cordeiro e Luciano Evangelista como realizadores. O resultado foi bom, traduzido em diversão pura.

Com o título Guará, o filme passa por referências de clássicos do cinema, como M, o vampiro de Dusseldorf ou Um lobisomem americano em Londres, para conhecermos o monstro de Goiania. No caso, temos um homem que se transforma em lobo-guará e assassina e aterroriza a noite dos habitantes da capital de Goiás.

Guará resolve-me muito bem no trabalho de criar no espectador a difícil tarefa de embarcar numa encenação dentro de um universo fantástico e, gradativamente, fazê-lo rir do próprio absurdo que o filme está lhes apresentando. É como um acordo silencioso que se estabelece entre o filme e o espectador; como se o filme falasse sério mas também se permitisse rir de si próprio. Algo difícil de ser alcançado no cinema.

Há ainda a cutucada política, em sua linda cena final, com o lobo-guará tomando a estátua do bandeirante sanguinário do passado. Massa.

*Viagem a convite da Mostra

Cena de “Guará”

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