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Festivais

44º Mostra SP (2020) – Crianças do Sol

As crianças do cinema iraniano não são mais as mesmas

Por Ivonete Pinto | 27.10.2020 (terça-feira)

Se a 44ª Mostra de São Paulo acabasse agora, Crianças do Sol  (Khorshid, 2020), poderia ser apontado como favorito. Tocante e admirável, vai  na contramão do que muita gente considera ser um típico filme iraniano: tem ação, suspense, humanismo sem sentimentalismo e uma narrativa clássica com encadeamentos imprevistos. O primor  da atuação de atores não profissionais segue dentro da expectativa, com o elenco infantil dando um banho de interpretação. Qualquer diretor de cinema que se arvore a trabalhar com esta faixa etária deveria se inspirar neste filme. Não à toa, o protagonista Rouhollah Zamani foi o vencedor do prêmio de melhor jovem ator no Festival de Veneza.

Antes, cabe situar um pouco o diretor Majid Majidi no cinema iraniano.

O Irã produziu, na sequência,  ao menos três gerações de cineastas imprescindíveis. Começa com Forough Farrokhzad, cujo documentário  The house is black (1963)  fez com que Abbas Kiarostami decidisse fazer cinema, e Dariush Mehrjui e seu A vaca  (1969), que influenciou não só Kiarostami  como também a geração posterior, que inclui Mohsen Makhmalbaf,  Jafar  Panahi,  Tahmineh Milani e Rakhshan Bani-E’temad. Na  terceira geração a ganhar proeminência internacional se destacam  Asghar Farhadi, Bahman Ghobadi e Samira Makhmalbaf.

Majid Majidi é contemporâneo geracional de Panahi e Makhmalbaf, mas diferente deles, faz um cinema com maior diálogo com o público interno, sendo mesmo popular por lá. Está mais próximo de Farhadi ao não afrontar diretamente  os preceitos religiosos, nem o sistema político, igualmente religioso, já que o Irã é uma teocracia. Majidi não trabalha narrativas codificadas,  preferindo temas envolvendo crianças e registros dramáticos próximos ao melodrama. Filhos do paraíso (1997), A cor do paraíso (1999) e  Baran (2001) fizeram sucesso de bilheteria lá.

Seu filme mais recente, Crianças do Sol, se encaixa na categoria do melodrama, enquanto drama popular, fazendo uso inclusive de trilha sonora musical, algo que Kiarostami, por exemplo, fugia. Porém não é o melodrama sustentado no excesso. Majidi  geralmente é comparado ao poeta Hafez, adepto do minimalismo da tradição Sufi, ligado ao misticismo do Islã. Na filmografia do diretor, isto funciona como uma maneira de entender o mundo, permitindo-lhe olhar as crianças de um modo tocante, sem ser piegas, valorizando os pequenos acontecimentos. Há, contudo, heróis mirins, com profundo senso ético. Em Filhos do paraíso, Ali perde o único par de sapatos da irmã e para ir para a escola passa a revezar o seu próprio par com malabarismo e dignidade .

Em Crianças do Sol, novamente temos um menino chamado Ali (nome do genro de Maomé, de enorme importância  na cultura xiita persa) que precisa ajudar outras crianças e precisa da ajuda delas para seus intentos. Ele tem 12 anos, o pai está preso a e mãe internada em um hospital para doentes mentais. Anda num grupo  de  amigos também com lares desfeitos. Cometem pequenos roubos para sobreviver.

Muitas cinematografias produziram  filmes com este mote. Desde o clássico e memorável  Aniki Bóbó, do português Manoel de Oliveira (1942), passando pelo marroquino As ruas de Casablanca, de Nabil Ayouch (2000) e mesmo o nosso Capitães de areia, baseado em Jorge Amado (Cecília Amado, 2011) trabalham enredos similares onde as crianças desamparadas são as protagonistas. Todos, de certa forma, bebem na fonte literária de Oliver Twist, de Charles Dickens.

Para além das desventuras infantis, em Crianças do sol o diretor tem que lidar com o fato de que falar sobre crianças desprotegidas pelo Estado e pela religião, que cometem delitos para sobreviver, não é algo que o regime xiita queira exibir. Depois da revolução de 1979, a censura, que já não era branda, se estabeleceu de vez no País e personagens infantis muitas vezes são usados para driblar interditos, falar através de metáforas. Estratégias a parte,  devemos dar crédito a um diretor que tem uma longa trajetória dedicada ao universo das crianças. Ele não está forçando nada, ao que parece. O filme ainda não estreou no Irã e é possível que venha a sofrer cortes, porque expõe um sistema hostil às crianças e porque escancara aquilo que o governo tenta jogar para baixo do tapete (persa, que seja), que é a existência de um submundo de drogas pesadas.

Cena de “Crianças do Sol”

Ali acaba sendo obrigado, a mando de um chefe de quadrilha,  a se matricular, com seus amigos, em uma escola para meninos em situação de vulnerabilidade (a tradução para “meninos de rua” usada no filme pode ser questionada, pois eles moram em suas casas). O objetivo de Ali é se infiltrar no porão da escola, cavar um túnel e chegar ao cemitério ao lado, onde haveria um tesouro. O enredo pode soar como uma simples caça ao tesouro,  meio déjà vu, mas não. O roteiro, de Majidi com a roteirista Nima Javidi, é original e de sofisticada arquitetura.

A escola, chamada Sol, tem um professor que involuntariamente vira aliado dos meninos, enquanto vemos o esforço deles na tarefa de cavar o túnel. Um esforço físico, um sofrimento brutal.

Um dos meninos, o afegão, tem uma irmã, também por volta dos 12 anos, que se vira vendendo produtos no metrô. Ela não tem autorização para isto, o que gera sua detenção. O que acontece com ela é cruel e a reação do professor é comovente. Ali tem uma relação de proteção à menina, que vai além de uma sugestão romântica (ele dá a ela um prendedor de cabelo, que nos lembra do prendedor dado pelo professor de O Caminho para casa, de Zhang Yìmou, à futura esposa). A proteção, o cuidado  para com a  menina e seu irmão carrega o componente étnico, pois eles são afegãos e podem ser expulsos do país a qualquer momento. Os refugiados afegãos representam uma espécie de escória no Irã por serem sunitas, miseráveis e muitas vezes se envolverem em crimes.

Nas reviravoltas do enredo, ainda há a escola que está para ser despejada por atraso do aluguel, enquanto Ali tenta desesperadamente encontrar o tal tesouro. Como não é um conto de fadas, é possível imaginar o que acontece.

O cinema iraniano já foi moda nos festivais, agora outras cinematografias (exóticas) disputam os holofotes. De qualquer forma, a Mostra, que trouxe os primeiros iranianos para São Paulo, continua apostando em algo singular. Encontrou neste Majid Majidi um renovado tour de force. Ele  consegue equilibrar denúncia, sem querer causar, como Panahi. Consegue mostrar crianças sem a aura  encantadora de um Kiarostami. E, por fim, consegue ser mais direto com os problemas sociais do país do que o oscarizado Farhadi tem sido. A comparação possivelmente seja inadequada, afinal, cada um com seu cinema. Mas que este Majid Majidi  acertou em cheio, acertou. Seu pequeno protagonista Ali, valente e sensível a sua maneira, já entrou para a galeria dos grandes personagens do cinema mundial.

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