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Críticas

Não Olhe para Cima

E o Oscar de melhor filme da pós-verdade vai para…

Por Luiz Joaquim | 30.12.2021 (quinta-feira)

É provável que a Netflix do Brasil não tenha tido um Natal tão divertido quanto o atual. Está colhendo os frutos de uma campanha certeira sobre um produto certeiro na hora certa: Não olhe para cima (Don’t Look Up, EUA, 2021), disponível pela plataforma online há sete dias.

O novo filme de Adam McKay (A grande aposta) alcançou aqueles status no qual não importa mais comentar sobre o filme em suas especificidades estéticas (mas, sim, também importa), porque as proposições que se projetam dele para e a partir do mundo real, particularmente nos pandêmicos 2020 e 2021, são gritantes e furaram a bolha do cinema. Todos, particularmente no Brasil, tocaram no assunto Não olhe para cima, talvez até errando o nome do filme, mas conscientes sobre essa comédia de erros pautada pela estupidez humana, sejam poderosos ou ordinários.

‘Gritante’ é o termo, se levarmos em conta a histeria cognitiva-social em que vivemos no mundo atual, isso mesmo antes de 2020. A ‘pós-verdade’ tornou-se o termo mais caro dos nossos dias, não pelo que ela explica, mas pelo significa.

Ao revisarem o século 21, lembrarão que na sua segunda década havia pessoas que não acreditavam na ciência. De modo que, haveria melhor piada – e Não olhe para cima é uma grande piada (talvez extensa demais) – do que aquela em que dois astrônomos (Leonardo DiCaprio e Jennifer Lawrence) tentam alertar o mundo sobre sua descoberta? Uma descoberta fatal: a de que um cometa de nove mil quilômetros de diâmetro irá colidir contra a terra em cerca de 6 meses e que o impacto irá exterminar a raça humana, mas ninguém dá a devida atenção ou simplesmente não acredita?

Personagens de DiCaprio e Lawrence tentam alertar um mundo que não encara problemas

Está na tradição da cultura hollywoodiana fazer de seus cientistas grande heróis. O querido Indiana Jones talvez seja a maior referência aqui. Mas queremos nos referir àqueles estereotipados. Os que descobrem um segredo, pela ciência, que irá aniquilar todo o planeta, a não ser que algo seja feito, com o auxílio daquele nerd cientista.

McKay pegou a fórmula e a contrabandeou para o mundo de hoje. Da pós-verdade. Fazendo do cientista um bundão aos olhos daqueles que ascenderam ao poder pela força da mentira e do ódio ao próximo.

Nesse sentido, é de pensar que apenas dois países poderiam parir com tanta competência uma piada filmada assim. Os Estados Donald Unidos Trump da América e o Brasil Bolsonaro. Este último país, coitado, teve seu cinema vitimado pelo próprio mandatário maior.

McKay, portanto, saiu na frente e soube aproveitar como poucos o absurdo dos dias de hoje transformando-o em sátira: arma poderosa e sofisticada de discussão que pode confundir até os idiotas que riem de si próprio sem perceber.

Fez da Covid um cometa e criou cenas antológicas que traduzem o que todos, quer dizer, alguns de nós, temos entalado na garganta, precisando ser gritado diante da negação de fatos científicos. O grito incrédulo, a plenos pulmões, sai pela boca do personagem de DiCaprio, num programa ao vivo na TV: “O que aconteceu com a gente?! Como chegamos a esse ponto?! Como é que ainda conseguimos nos comunicar? O que fizemos contra nós mesmos?!”

Uma nota para DiCaprio e sua performance, emprestando o tom perfeito do desespero e da descrença para uma… comédia. Atores sabem bem que o timing da comédia é bem peculiar. E DiCaprio poderia se aventurar mais por aqui. Seria bem-vindo.

Rylance (de pé, ao centro) como uma mistura de Steve Jobs com Andy Warhol, e Streep como a presidenta dos EUA

Para além do perrengue dos dois cientistas em querer fazer com que a presidente dos EUA (Meryl Streep) e a mídia percebam o óbvio, temos uma dezena de ótimos personagens satélites formando esse mundo fictício que saiu da cabeça de McKay (também roteirista aqui, adaptando obra de David Sirota).

São personagens totalmente passíveis de serem espelhados no nosso mundo de hoje e gerando diálogos e situações inesquecíveis, como a do general do pentágono que cobra por comida gratuita; ou como a cantora pop em seu namoro com outro cantor pop dominando o trending topics das redes sociais; passando pelo popular programa de TV com sua apresentadora desalmada (Cate Blanchett), e, ainda, um mago da tecnologia e dos smarphones que se acredita um artista ou Deus – vivido por Mark Rylance, ótimo, numa mistura de Steve Jobs com Andy Warhol -, representando os zilionários que realmente mandam no mundo.

É requintada, essa piada chamada Não olhe para cima (talvez um tanto extensa demais, repetimos), e não deverá ser esquecida lá no futuro, naquela revisão do século 21, quando rirão disso com mais alívio do que nós nesse momento.

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