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Festivais

Conceição: Autor Bom É Autor Morto

Um projeto que dialoga mais diretamente com um ideário do cinema brasileiro entre os anos 1970 e 1980

Por Marcelo Ikeda | 25.01.2022 (terça-feira)

– texto originalmente publicado como parte do livro O cinema independente brasileiro contemporâneo em 50 filmes, publicado pela Editora Sulina.

O projeto de Conceição começou quando alunos do último período do Curso de Graduação em Cinema da Universidade Federal Fluminense (UFF) resolveram, em vez de produzir seus curtas separadamente, se unir para realizar conjuntamente um longa-metragem. O projeto acabou dando certo e fazendo história, já que se tratou do primeiro longa totalmente realizado por diretores de um curso universitário de cinema, mas, desde o início do projeto em 1996 até sua primeira exibição pública, na Mostra de Tiradentes em 2006, houve muitas aventuras e transformações não apenas no projeto mas no próprio cinema brasileiro.

A tarefa de costurar as diferentes ideias num único projeto, trazidas por nada menos do que doze argumentistas, coube a Daniel Caetano e Guilherme Sarmiento, responsáveis pelo roteiro de Conceição. O roteiro incorporou a própria gênese do projeto, numa inspiração metalinguística. Um grupo de alunos, entre os quais estão os próprios diretores, está sentado numa mesa de bar, bebendo e conversando, falando sobre o mundo e sobre que filme gostariam de fazer. O bar surge não apenas como espaço de sociabilidade mas como verdadeiro laboratório de criação, onde se moldam as ideias e se formam as parcerias para viabilizá-lo, numa tradição que remete a um certo cinema brasileiro, como o Bar Soberano, na Boca do Lixo, em São Paulo, ou o Spagghetilândia, no Beco da Fome, no Rio de Janeiro.

À medida que os personagens vão contando as suas ideias, Conceição vai se desenvolvendo, como um espelho do seu próprio processo de criação: um processo coletivo, de uma juventude que busca transformar a diversidade de ideias, projetos e sonhos na materialidade de um filme. Essa juventude expressa a sua relação com o cinema por meio de uma liberdade e um descompromisso, regida pelo prazer em filmar e pelo seu descontentamento ou inadequação aos rumos do cinema brasileiro da época (final dos anos 1990), representados no chamado “cinema da retomada”.

O projeto de Conceição dialoga mais diretamente com um ideário do cinema brasileiro entre os anos 1970 e 1980 do que propriamente com o da época em que foi filmado, os anos 1990. Sua recusa ao chamado “cinema da retomada” se manifesta pelo desprezo ao “bom gosto”, aos valores de produção e do mero acabamento técnico. Conceição tampouco adere aos temas socais relacionados à busca de uma “identidade nacional” ou pela busca de mercado com um cinema comercial de linguagem televisiva.

Por outro lado, Conceição se afasta do protótipo dos filmes mais conhecidos da geração garageira, recusando a adesão ao padrão mais típico do cinema contemporâneo dos festivais internacionais, ligado ao chamado “cinema de fluxo”. Recusando tanto o tom institucionalizado do “cinema da retomada” quanto a grife das curadorias estrangeiras, Conceição irá dialogar com um certo cinema brasileiro dos anos 1970/1980, buscando uma aproximação de um genuíno cinema popular. Conceição é inflado por um espírito libertário, que encontra na união dos jovens o descompromisso por algo além do prazer de filmar, longe das representações identitárias do Brasil, e que vê na curtição e no avacalho formas possíveis de lidar com suas próprias impossibilidades. Sua despretensão também se expressa por meio de um diálogo com personagens e com gêneros considerados “menores”, numa quebra da hierarquização do cinema do bom gosto. Um dos pequenos episódios dialoga com o filme-piada e o cinema trash, quando uma mulher corta o pênis do amante e o passa no moedor de carne.

Para Conceição, o diálogo com o cinema popular não ocorre nem pela reprodução dos padrões narrativos nem do cinema hollywoodiano nem da teledramaturgia. O popular está presente pela incorporação criativa de elementos que não estão ligados à “alta cultura”. Os universitários não realizaram Conceição com o objetivo de se inserir no mercado de trabalho, como um portfolio que comprove suas habilidades técnicas, seu bom gosto e seu profissionalismo. Ao contrário, o filme, dialogando com uma tradição de um “cinema de invenção” brasileiro, busca ser “irresponsável”, irreverente.

Por isso, o filme recusa a aderência plena ao chamado “cinema de autor”. O autor seria uma invenção pequeno-burguesa que tornaria o filme um elemento de uma grife. Assim, o roteiro planeja a vingança dos personagens contra seus autores. Os próprios personagens rebelam-se contra seus destinos, saem da tela e se insurgem. Essa é a única revolução engendrada no filme: a morte do autor por seus personagens, em tom canastrão, revela-se quase uma paródia, aos moldes da chanchada, das abordagens da luta de classes no cinema político brasileiro dos anos 1960. Numa autocrítica metalinguística, o assassinato dos autores substitui a revolução do proletariado contra seus patrões.

Ainda, a morte do autor representa também o próprio processo de produção, em que não houve uma assinatura única, mas um processo coletivo, em que toda a equipe contribui para a realização do filme. Quando os personagens estão finalmente libertos de seus autores, o filme continua, mas sem roteiro definido. Os personagens não precisam mais “trabalhar”, e simplesmente vivem a vida, bebendo e cantando, saindo do claustrofóbico canto do bar e ganhando as ruas do mundo, sendo observado pelos transeuntes que observam com admiração aquela tresloucada filmagem. A utopia de Conceição é poder “viver bem a vida”, sem nenhum outro compromisso além da liberdade e do prazer de viver a vida.

Filmado em 16mm, Conceição enfrentou muitas dificuldades para ser concluído, já que a finalização necessitava de recursos para ampliá-lo para 35mm, formato padrão das salas de cinema. Nesse momento, no início dos anos 2000, no entanto, o cinema acelerava seu processo de transição para o digital. Esses impasses fizeram com que o filme só ficasse pronto em 2006, dificultando seu contato com o público.

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