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Festivais

Filme de Aborto

O filme mais radical da Mostra Aurora na Mostra de Tiradentes em 2016

Por Marcelo Ikeda | 25.01.2022 (terça-feira)

Filme de aborto foi certamente o filme mais radical da Mostra Aurora na Mostra de Tiradentes em 2016. O tradicional debate com a presença do diretor e equipe na manhã seguinte à projeção foi polêmica, provocando diversos questionamentos, especialmente de um grupo de feministas que questionava o realizador por utilizar uma questão relativa ao corpo da mulher para intitular seu filme. Na mesa de debates, foi curioso perceber que Talita Araújo, corroteirista do filme junto com Péricles, apoiou os questionamentos da plateia e concordou que o diretor estava equivocado. Em geral frontal e não raras vezes raivoso, Péricles, no entanto, não partiu para o confronto, dando respostas evasivas, que propunham que o espectador precisava construir o filme a partir de suas próprias referências. No entanto, pelo menos para mim, estava claro que o aborto a que o filme se referia não era apenas uma questão de parir um feto mas especialmente de uma geração que vê seus sonhos partidos pela imposição do trabalho e pela transformação do tempo em produto do capital. Não sei porque mas, ao ver esse filme, me remeti a um dos primeiros filmes de Alexander Kluge, Trabalhos Ocasionais De Uma Escrava, que se passa parcialmente numa clínica de aborto.

Eu, no entanto, não pude me posicionar pois era membro do Júri da Mostra Aurora daquele ano. O vencedor daquele ano acabou sendo o também muito bom filme do Thiago B. Mendonça, mas combinei com o júri que iria escrever, posteriormente ao resultado, semanas depois do encerramento do festival, apenas um texto, sobre um único filme, que não poderia passar em branco. A solidão, o desespero e a radicalidade desse filme me tocaram profundamente. Um cinema pobre e extremamente fragmentado para sugerir não só sua crise com um modelo de sociedade mas também a crise diante de um modelo de cinema. Até hoje considero Filme de aborto o trabalho mais radical e mais incompreendido de Lincoln Péricles. O início, com uma música de Carolina Maria de Jesus, diante de uma tela preta sem imagens, é completamente desconcertante.

Posto aqui em seguida o texto que escrevi em fevereiro de 2016 sobre o filme, publicado em meu site Cinecasulofilia, com pequenas alterações.

“Lincoln apresenta Filme de aborto a partir do seu lugar de fala: é um filme feito e sobre a periferia de São Paulo, o Capão Redondo. É um filme pobre, que se assume pobre. A pobreza do filme é uma forma ética de dar a ver o mal-estar sobre o qual o filme se propõe a refletir.

No entanto, estamos distantes da espetacularização da miséria de um Cidade De Deus. Passa muito longe do otimismo do “Rio Mais Cenário” de um Cinco Vezes Favela: Agora Por Nós Mesmos. Está longe até mesmo do drama profundo de Mataram Meu Irmão, montado por Lincoln.

O filme não quer ser um panfleto social, mas apenas busca expressar sua indignação e o cansaço dos corpos diante do esmagamento das possibilidades de ser. O filme, então, não apresenta esse universo, os lugares e os personagens como geralmente um filme se apresenta a nós. Ele assume em sua gramática uma profunda desorientação, uma fragmentação aguda que nos incomoda. Seu incômodo é gerado não apenas por seu discurso agudo (o aborto, a morte, o trabalho) mas principalmente pela busca de uma gramática justa que possa expressar esse mal estar.

Planos de câmera na mão combinados com planos de câmera fixa extremamente alongados; planos de registro documental de inspiração realista combinados com planos alegóricos de inspiração fantástica (os homens fazendo aborto); faixa sonora ora sincronizada ora dissociada das imagens; música combinada com silêncios; etc.; etc.

Em comum, a solidão, o desespero, os corpos massacrados pelo trabalho, a busca de alguma alternativa diante do destino que parece inexorável, a juventude que procura falar de alguma forma possível, uma pobreza e uma honestidade cênica profunda.

Não é possível ler Filme De Aborto com uma cartilha pós-estruturalista que relaciona intenção e resultado. O filme está completamente imerso em romper essa gramática que permite qualquer comunicação direta, pois o filme – de novo – não é um panfleto mas a expressão de uma juventude no Brasil de hoje (um filme urgente).

Em comum, essa solidão profunda e esse desespero. O filme me lembra dos experimentos das vanguardas dos anos vinte, dos filmes do Manifesto de Oberhausen, do cinema marginal, especialmente de Bressane, das obras de Godard/Gorin do Grupo Dziga Vertov, como Um filme como os outros, mas todas essas referências na verdade tentam abafar meu profundo espanto com esse filme, que foge às classificações.

Diante da honestidade cênica de Filme De Aborto, lembramos de uma frase antiga que o cinema (digo, a instituição cinema) é uma máquina de mentiras.

Filme De Aborto, como o próprio título diz, nos faz pensar o que é um filme e o que é um aborto. O filme não fala apenas literalmente sobre o aborto de fetos, mas de uma geração abortada, pela imposição de um modo de ser que castra a juventude pelas normas do trabalho. A forma como o capitalismo implica na restrição dos modos de ser é o grande tema desse filme (o “de aborto”), e de outro lado, como dar a ver essas questões através da gramática do cinema, negando o próprio capitalismo das imagens (o “filme”). Muito coerentemente, Lincoln não apresenta um filme de tese, mas apenas derrama na tela seu desconforto com o mundo, e uma apreensão de como a linguagem do cinema pode contribuir para refletir sobre esse mal-estar.

Isso porque, ao vê-lo mais atentamente, é possível ver um rigor, um diálogo com Brecht e com Carolina Maria de Jesus. As pontas pretas do início e do final do filme, e o contraste criado entre elas, nos dá a ver a radicalidade do discurso do filme. E como Juliano Gomes disse muito bem no debate em Tiradentes, “é preciso ver Carolina Maria de Jesus não apenas pelo seu discurso mas principalmente pelo seu estilo”. Filme De Aborto me interessa sobretudo pela sobriedade como encena seu desespero. Ou seja, por seu estilo.

Não me lembro de nenhum outro filme do cinema brasileiro recente que tenha conseguido uma forma de encenar tão direta, tão profundamente honesta, que exaspere o seu desespero diante de uma juventude abortada, por meio de um cinema dilacerado. Ao final, a história de uma mulher grávida que se suicida (um tipo bizarro de aborto). A bebida. Uma mãe que banha o corpo da filha. A tela preta. A música de Carolina. Já basta.”

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