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Festivais

15º Taquary (2022) – Mostra Universitária

Um sentido de pertencimento dos personagens a locais geográficos parece permear os filmes selecionados

Por Luiz Joaquim | 29.03.2022 (terça-feira)

É sempre excitante acompanhar a produção audiovisual universitária em festivais de cinema. E o Curta Taquary, nesta 15ª edição, sabe bem disso. É excitante porque tal categoria costuma vir acompanhada por uma ideia de liberdade criativa bastante vibrante, e isto habitualmente dentro de um espectro muito limitado de recurso financeiro para a produção, ou seja, os resultados terminam por nos apresentar aquilo que há de mais autêntico em soluções criativas.

Uma observação: nesta ‘Mostra Universitária’ da edição 2022, um certo sentido de pertencimento dos personagens a locais geográficos específicos pareceu permear quase todos os dez títulos selecionados para o programa. São filmes, em sua maioria, nos informando que os ambientes eleitos pelos realizadores agem efetivamente sobre aquilo em que seus protagonistas se tornaram, ou gostariam de se tornar, para o bem e/ou para o mal.

A começar pelo curta-metragem Cidade sempre nova, de Jefferson Cabral, no qual o diretor potiguar mergulhou sobre mais de 330 filmes realizados em (ou sobre) a capital do Rio Grande do Norte, nos últimos 20 anos, para montar um mosaico cinematográfico discursivo que investiga os efeitos de um lugar cujo passado historicamente costuma ser desrespeitado ou simplesmente relegado.

Tendo como uma das bússolas discursivas a obra Natal: Cidade sempre nova, de Câmara Cascudo, Jefferson articulou as várias sequências dos filmes pesquisados para dar um novo sentido.O sentido do esquecimento, numa construção formal, inclusive, que remete a trabalhos como Histórias que nosso cinema (não) contava, da Fernanda Pessoa e até Pacific, de Marcelo Pedroso.

Já o pernambucano Crescer onde o sol nasce, de Xúlia Doxágui, tem na comunidade do Alto do Sol Nascente (Olinda) um personagem em si. Xúlia investiga, dando uma energia infanto-juvenil ao ambiente, aquilo que faz do lugar algo simpático para as crianças do filme e para a babá Dafnney (também resgatando um tanto de sua infância). Como brincam as crianças num lugar onde não há espaço público para convivência coletiva, sem parque, praças e quadras? Essa é a pergunta chave aqui. Como é que esse lugar molda suas crianças?

O chileno Nicolás Pérez buscou a memória dos estudantes bolivianos Alexandra e Santi (memórias fotográficas e mentais) para reconstruir, no filme El hábito de habitar, um ideário do lugar que já foi residência deles. Uma casa simbólica para tantos estrangeiros alunos da Universidade Federal de Integração Latino-Americana (Unila), em Foz do Iguaçu.

E de São Paulo, a dupla Ana Machado e Vitor Artese nos suga quase que instantaneamente no início de Estas lápides onde habitamos para o frenesi da capital paulista. A ótica é a de uma câmera go-pro acoplada no capacete do biker entregador de comida, Danilo. Nada mais cru, em sua verdade, do que procurarmos enxergar São Paulo por essa perspectiva.

Nesse sentido, a vida ao redor de Danilo (a cidade em si) é a paisagem que vai definir o seu estado de espírito. Por uma estratégia narrativa esperta, Ana e Vitor não nos revela o rosto (que é a nossa principal identidade) desse entregador, deixando para o final a tal apresentação, que vem junta com uma explosão tensa, comovente, exigindo a dignidade que o personagem merece. Um belo filme.

Até no stop-motion O templo do Rei, de Verônica Cabral, é numa cidade fictícia – Jaguara – onde tudo se processa, neste drama fabular, para entendermos o destino de seus habitantes, prestes a encarar o “fim dos tempos”.

É, também, em Meu coração é mais vazio na cheia, de Sabrina Trentim, uma localização específica que acaba por definir todo o emocional de sua protagonista. No caso, falamos da parte norte do Rio Araguaia, entre o Tocantins e o Pará.

Longe do que, preconceituosamente, se espera do endereço, temos no filme de Trentim um passeio visual e sonoro envolvente, mas não pela cultura tradicional, e sim por uma proposição sensorial, que pode ser reconhecida por qualquer espectador de qualquer lugar do mundo. Mas, ainda assim, com curiosidade sobre aquela locação específica.

No caso do mineiro Filipe Bretas Lucas, com o seu emocionante Para as gerações que vieram antes de mim, a memória de sua família está em primeiro plano como ponto de partida para o realizador entender o lugar onde está e de onde veio, e o quanto isso é importante para saber o lugar para onde irá.

A história de Filipe, e de seus antecedentes, é a mesma de diversas outras da classe média que sofre racismo sem compreender a dimensão infinita e incrustada em nossa sociedade desse mal. Filipe, com domínio sobre o tema, consegue construir algo sério e ao mesmo tempo despretensiosamente envolvente, num equilíbrio raro de ser conquistado para filmes com tal temática.

Autoimagem e o reconhecimento de si mesmo é o foco do baiano Luan Santos, a partir de três mulheres pretas de gerações distintas – infantil, jovial e na meia-idade. O título, Praia dos tempos, adianta que este lugar escolhido – a praia – servirá de espaço para o encontro dos três tempos dessa mesma mulher que precisa se reconhecer em sua beleza particular.

E se temos a cidade de São Paulo ocupando fortemente quase todos os planos de Estas lápides…, o centro do Rio de Janeiro mostra-se vivo em Quando eu soltar a minha voz, de Guilherme Telles. Mais particularmente, temos a Cinelândia, região outrora definidora da e para a cultura carioca.

Na performance muda do protagonista que toca seu violão por uns trocados em frente ao Teatro Municipal temos uma declaração de amor àquele quadrilátero famoso do Rio de Janeiro. Já no travelling da abertura, Telles deixa claro que sabe exatamente onde quer chegar ao escolher a região como locação.

Nos enquadramentos precisos e nas brincadeiras bacanas de edição de imagem combinadas à música, o curta carioca mostra-se como um delicado recado discreto de amor à cidade e aos artistas anônimos.

No décimo filme do programa (ou o primeiro, não há ordem, afinal, numa exibição por streaming) não há beleza. Há a urgência de revelar a brutalidade e injustiça dos despejos das mais de 30 famílias na ocupação CCBB – “a 1 quilõmetro do Congresso, do STF e do Palácio Presidencial” -, em Brasília.

Muito rapidamente, o documentário Tempo de derruba, de Gabriela Daldegan, com fotografia de João Vasconcelos, nos coloca, como espectadores, dentro do drama de seus personagens, alternando seus depoimentos aos de ativistas e intercalando algumas imagens de arquivos que só reforçam o que há de cíclico, ou contínuo, nessa tragédia social.

A derrubada de uma escola pela polícia, que foi levantada ali de modo improvisado, é simbolicamente forte em seu impacto para dar a dimensão do desrespeito, mais do que isso, do crime, denunciado pelo filme de Gabriela.

Mais uma vez, são filmes, em sua maioria, que trazem no bojo um endereço como leitmotiv das complicações humanas elaboradas por estes jovens cineastas aqui presentes no 15º Curta Taquary. Que venham mais filmes.

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