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Críticas

A Mulher Rei

Elas podem. Elas fazem. Nasce uma heroína preta, criada para ser admirada em todo o mundo.

Por Luiz Joaquim | 20.09.2022 (terça-feira)

Há quatro anos, quando veio ao mundo, Pantera negra fez eclodir uma pequena revolução identitária na indústria cinematográfica. Crianças e jovens pretos ao redor do mundo tinha no Príncipe de Wakanda um ídolo com status de super-herói para tomar como referência de luta e dignidade étnica. O trabalho dirigido por Ryan Coogler varreu 2018 com a sua aclamação, divertindo e abrindo os olhos para a beleza do que há de altivo em ser preto. O filme arrecadou, no mundo todo, 1,3 bilhão de dólares, fez a Marvel, pela primeira vez, ter um filme concorrendo na principal categoria do Oscar (a de melhor filme) – levando para casa os de direção de arte, figurino e trilha sonora –, e, o melhor de tudo: emprestou força ao sentido de orgulho próprio principalmente às crianças ao redor de todo o mundo.

Não é que antes do filme estrelado por Chadwick Boseman (1976-2020) o cinema hollywoodiano não tenha tramado roteiros importantes nesse campo, mas Pantera negra tornou-se uma daquelas obras que transcende o cinema. Tornou-se um evento e prestou um serviço social mundial.

Pulamos para 2022, mais precisamente para a quinta-feira próxima (22), e agora são as jovens pretas que terão a sua versão hollywoodiana para urrar e tomar como inspiração identitária, podendo espelhar-se em outras jovens que brilham nas imagens de A mulher rei (The Woman King, EUA), de Gina Prince-Bythewood.

Com elenco liderado pela “anomalia” (tudo-que-faz-faz-bem) Viola Davis, A mulher rei não se escora na grande atriz oscarizada por Um limite entre nós (2016) nem na sua personagem chamada Nanisca. A boa história do filme, criada pela atriz Maria Bello e roteirizada por Dana Stevens, dá espaço para outras duas gerações de mulheres colocarem seus dilemas e/ou certezas femininas em destaque.

Enquanto Nanisca (Davis) está na meia idade e carrega o peso de liderar como uma general as Agojie, o mais importante exército do reino africano de Daomé no século 19 (hoje o país Benim), a heroína também precisa resolver consigo mesma aspectos íntimos e próprios da maternidade.

Já Izogie (a brilhante Lashana Lynch, vista como 007 no recente Sem tempo para morrer) é uma mulher em sua plenitude física, tendo conquistado um posto de confiança e sendo inspiração para muitas jovens aspirantes a se tornarem uma guerreira Agojie. O brilho de Izogie tem como fonte suas conquistas, disciplina, foco, competência e trabalho duro, enfim.

Lashana Lynch (e) e Thuso Mbedu em cena de conselhos para a jovem Agojie

E, representando a juventude, há a adolescente Nawi (a sulafricana Thuso Mbedu, estreando lindamente no cinema) que vai parar no exército das Agojie por ter fugido de um casamento arranjado pelo seu pai. Uma vez recrutada, confronta sua general Nanisca sobre o regulamento que proíbe o envolvimento amoroso das Agojie com homens, tornando-se a própria Nawi, posteriormente, uma interessada no afro-brasileiro Malik (o inglês Jordan Bolger: o menos afinado de todo o elenco principal).

Temos, portanto, no campo, digamos, sociocultural de A mulher rei – que é essencialmente um filme de ação com tom épico em cenário de guerra – três escopos bem preenchidos para qualquer espectadora de qualquer geração poder se espelhar. São escopos delineados, percebe-se, com bastante cuidado em sua causa e efeito.

Numa das sequências de treinamento, por exemplo, a jovem Nawi conta de sua admiração à guerreira Izogie e revela que quer se tornar alguém igual a ela. O conselho que Nawi escuta da ídola é que, para se tornar quem ela quiser ser, a jovem não pode perder o foco. Em outras palavras, no contexto da conversa, não é interessante deixar-se envolver amorosamente com alguém.

Com essas três gerações de mulheres guerreiras – Nanisca, Izogie e Nawi – cada uma a seu modo, A mulher rei parece radiografar bem aspectos de um cenário contemporâneo para gerar ilações a respeito da autonomia sexual, da carreira profissional, da sororidade, da maternidade, do estupro e do aborto como algo que concerne às mulheres, e só a elas, decidir de que forma lidar.

David (d) como Nanisca e  a sulafricana Mbedu como Nawi em papeis que concentram enorme carga de simbolismo mundial.

Ainda que nesse campo o recado seja bem dado, quando paramos para avaliar o filme em algumas de suas estratégias para ganhar a equivalência de épicos clássicos do cinema, percebesse alguns deslizes que talvez comprometam a obra na hora de conquistar seus/suas espectador(as), frustrando talvez o anseio que a Sony/Tri-Star projete para a produção como uma futura bilheteria bilionária, tal qual foi Pantera negra.

A mulher rei começa numa sequência tensa, de conflito bélico, conforme qualquer filme de ação contemporâneo norte-americano. Está claro que o plano é conquistar de cara o/a jovem espectador(a) além de escancarar imediatamente as razões pelas quais as Agojie são temidas pelas outras tribos.

A missão é resgatar seus parentes sequestrados, que seriam vendidos como mercadoria para os traficantes escravocratas. A general Nanisca sai vitoriosa, mas descobre que o inimigo está se fortalecendo para subjugar a tribo de seu Rei Ghezo (John Boyega), objetivando ampliar seu poder como atravessador no mercado de escravos.

E aqui abre-se outro parêntese a respeito do discurso libertário e de revisionismo social de A mulher rei, neste caso para a população afro-descente de toda a parte do mundo.

O mercado de escravo entre as tribos africanas e europeias endinheirava as tribos colaborativas e deixava ainda mais miseráveis as subjugadas. Nesse processo, os verdadeiros beneficiados eram a Europa e a América. É pelo conselho da general Nanisca ao seu Rei Ghezo que o espectador vai atentar para, naquele contexto histórico, o tanto de erro criminosos que havia, nessa lógica, contra os pretos da África e entre eles próprios.

Nanisca sugere que Daomé progrida pela agricultura e não vendendo seus irmãos aos europeus, ainda que sejam prisioneiros de guerra, sob o risco de, no futuro, todo as tribos africanas, indiscriminadamente, serem tratadas como mercadoria.

Nanisca (David) e o Rei Ghezo (John Boyega): visão para livrar a África do subjugo dos europeus e dos americanos

Mas, repetindo, alguns deslizes parecem empurrar A mulher rei para baixo. É o caso quando ouvimos as personagens africanas (atrizes norte-americanas e inglesas) falando um inglês que soa como o de um brasileiro começando um curso de idioma. O estranhamento para o espectador é imediato e distrativo.

Curioso observar que o personagem afro-brasileiro Malik fala português (ainda que sob forte sotaque) mas as africanas de Daomé não falam o seu idioma de origem.

E o distrativo não reside apenas nas complicações com o idioma, está também na figura pouco afável construída para a heroína Nanisca. Alguém poderá gritar que não há como apresentar uma guerreira africana do século 19 com ares de simpatia. Bem… será verdade se a ideia de simpatia para esse alguém pairar apenas sobre um modelo bobo de distribuição gratuita de carinho e sorrisos. E, no corpo do próprio A mulher rei, basta observar com atenção a graça com a qual foi composta a divertida personagem muito bem defendida por Lashana Lynch.

O Príncipe de Wakanda, para ficarmos no exemplo correlato óbvio, não era menos firme por ser mais simpático que a general Nanisca; e se alguém ainda quiser implicar com a comparação entre um super-herói de quadrinhos com uma personagem inspirada numa história real da África de 200 anos atrás é bom ter em mente que o canal que nos vende as duas histórias é o mesmo – Hollywood – e ainda que traga distinções pontuais entre os heróis/heroínas que cria, o seu gol primeiro é sempre o mesmo: você sua devoção e o seu dinheiro. Não necessariamente nessa ordem.

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