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Críticas

Praia do Silêncio

Filme de Francisco Garcia vai ganhar sua primeira exibição pública no 46ª Mostra de SP.

Por Humberto Silva | 26.09.2022 (segunda-feira)

– no frame acima, extraído do vídeo divulgado em 2018 pelo LabJor da FAAP, o professor, pesquisador e ator André Gattiprotagonista de Praia do Silêncio.

Podemos assistir a um filme como obra isolada, sem nos preocuparmos com o que ela representa, o que ela nos revela ou se nos perturba. Podemos apenas nos atermos dele à “história que é bem contada”. Assim sendo, esse filme isolado em pouco tempo pode passar a ser, em nossa experiência, tão só mais um que foi visto, mais um de que talvez sequer amanhã lembremos a “história contada”.

Há filmes, no entanto, para o qual isso não é possível. Assim, para estes um alerta: quem quer do cinema apenas uma “historinha bem contada” ficará enfadado com filmes que lançam questões, perturbam e, eventualmente, abrem mão de contar “uma boa história”. Afinal, para grande massa de espectadores que vai ao cinema, um filme não é senão diversão para desanuviar: nada de perturbação, pois ir ao cinema é um rito alienado.

Praia do silêncio, de Francisco Garcia, que terá lançamento na próxima Mostra de Cinema de São Paulo, vira as costas para quem vê o cinema como espetáculo feito pela indústria de entretenimento, com uma “historinha bem contada”. Com ele, Francisco Garcia deixa para mim antes de mais nada uma questão crucial: como situá-lo devidamente na recente produção cinematográfica nacional?

Vivemos, pois, os anos Bolsonaro, os anos de desmonte a cultura com o cinema diretamente atingido. A narrativa de Praia do silêncio perpassa os impasses e incertezas desse tempo de trevas bolsonaristas de modo sutil e alusivo. Por isso, a fita de Francisco Garcia se situa entre as realizações dos últimos anos que carregam um quê da fossa em que estamos metidos.

O mal-estar em que estamos é retratado por meio de um indivíduo. André (André Gatti) é o protagonista: professor universitário, separado e com uma filha do casamento. Feita a tentativa de situar Praia do silêncio no cenário atual de nosso cinema, passemos à questão posta pelo filme. Como André vive e qual é a relação que ele estabelece com a ex-mulher e a filha?

O filme exibe o personagem no momento em que o ex-presidente Lula é preso, antecipando assim os anos Bolsonaro. André vive num trailer, numa praia isolada, onde mantém contato fugaz com um amigo de ocasião, vagueia pela praia e por trilhas na mata que a circundam. Sua presença é praticamente onipresente. Ele se levanta, faz xixi, lava o rosto, escova os dentes, toma café…; o cotidiano de um professor que, de saco cheio da vida social, ao se aposentar busca o isolamento.

Aí então, dois lances bastante interessantes do ponto de vista da utilização de recursos da narrativa cinematográfica. A voz over dele, da ex-mulher e da filha indica o envio de cartas sem respostas… As cartas dela, quatro no total, com marcação temporal, cobrem um intervalo de quinze anos…

Por meio das cartas, sua ex-mulher toca em feridas decorrentes da separação, em um problema de saúde da filha – a perda da audição -, fala de uma estada na Inglaterra, em contraste com o clima político no momento da escrita: o desmoronamento da União Soviética, o Brasil de FHC e de Lula. Nas dele, contudo, em duas, estão ausentes marcas do tempo. Elas expressam seu sentimento de fracasso pessoal e, em decorrência, o de uma geração que, jovem, acreditou na revolução.

A única carta da filha, já no final do filme, é um comovente depoimento sobre a ausência do pai.

A utilização de voz over como recurso narrativo num longo intervalo de tempo faz de Praia do silêncio um filme peculiar. A separação efetivamente separou o casal. Não há indícios – elementos diegéticos – de que eles tenham tido contato além das missivas. Mas, o arco de tempo na correspondência escrita é enorme…

Um espectador desatento talvez não se incomode com o intervalo de tempo entre as cartas dela e que as dele estejam simplesmente soltas no tempo… Mas esse para mim um dado perturbador e misterioso no filme. Em vinte e cinco anos, uma vida é repleta de acontecimentos…

O André das imagens na praia isolada, entretanto, pelo tom das cartas da ex-mulher, parece ter o mesmo temperamento do passado. Como se ele estivesse recebendo as cartas enquanto vive no trailer. É como se o tempo não houvesse passado e ele estivesse no trailer há um quarto de século…

Esse jogo com a temporalidade por meio de missivas é incômodo porque o espectador ficar a indagar: quais seriam as razões que o levam a ter uma visão cínica da vida e caminhar entre as trevas com um lampião tal qual o filósofo grego Diógenes, o cínico?

Outro recurso narrativo que também merece destaque é o da presença da filha ao lado dele no trailer. Mulher feita, ela não se comunica com ele. Melhor, o que os liga é a referência ao livro Homens e ratos, de John Steinbeck, que narra a estranha trilha de dois personagens com temperamentos desalinhados…

A presença da filha, na verdade, parece funcionar como uma espécie de fantasma, de espectro. Não é possível supor que, como dado de realidade, ela esteja de fato presente. O que se tem com isso é algo como o peso que carrega por ter perdido a filha com a separação. Visto sob esse aspecto, não é descabido ao espectador conjecturar que a carta da filha não é senão resultado de peso na consciência.

Por esses dois recursos narrativos – poderia realçar outros… –, Praia do silêncio é um filme a ser visto com toda atenção. Ele exige paciência e capacidade de reflexão para quem não tem na ida ao cinema a realização de um rito alienado. Por meio de uma situação limite, para lembrar Sartre, Praia do silêncio expõe um personagem niilista diante da fossa em que nos encontramos.

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