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Festivais

26ª Tiradentes (2023): A Carta de Tiradentes

A Carta de Tiradentes evidencia a retomada de um esforço de remobilização do cinema brasileiro.

Por Marcelo Ikeda | 26.01.2023 (quinta-feira)

– acima, sessão na praça em 22 de jan. 2023, Foto Leo Lara/Universo Produção

Ontem (25) na Mostra de Tiradentes houve a leitura pública da Carta de Tiradentes, com um conjunto de recomendações e diretrizes de políticas públicas para o audiovisual, a serem encaminhadas para a equipe do novo governo federal. A Carta foi o fruto do Fórum de Tiradentes, que reuniu um conjunto bastante abrangente de agentes do setor audiovisual, organizados em cinco grupos de trabalho: formação, produção, distribuição, exibição e preservação.

As políticas públicas do audiovisual sempre foram moldadas a partir de uma visão tradicional da cadeia produtiva em torno de três elos: a produção, a distribuição e a exibição. No entanto, dadas as transformações e as transversalidades do audiovisual no contexto da sociedade contemporânea, é preciso que as políticas públicas compreendam a cadeia produtiva e criativa do audiovisual de forma mais ampla, abrangendo também outros setores e atuações para além dos elos clássicos de um modelo de base economicista, mas incorporando aspectos como a formação, a preservação, a crítica de cinema, os festivais, a infraestrutura técnica, os cineclubes, os arranjos produtivos locais, os coletivos artísticos, etc. Dessa forma, será possível incorporar na política pública os anseios de outros corpos e imaginários, para além de uma política de empresas e dos modelos hegemônicos já estabelecidos do setor. Essa visão abrangente é aderente às perspectivas das políticas de reconstrução de um novo Brasil, anunciadas pelo novo goveno Lula, em relação à saúde, cultura, educação, políticas de direitos humanos e de povos originários, etc. Nesse sentido, a Cultura se integra a um projeto de País de maneira transversal, de modo que se evidencia como um setor estratético, pela produção e reverberação de imaginários possíveis.

Nesse contexto, a Carta de Tiradentes, pela abrangência de agentes que formaram os cinco grupos de trabalho, pode ser considerada como uma espécie de novo Congresso Brasileiro de Cinema (CBC). É preciso lembrar que o III CBC, realizado em dezembro de 2000 em Porto Alegre, foi fundamental para as políticas que resultaram na criação da Ancine, em 2001. De uma forma análoga, num momento de crise do setor mas também de oportunidades, a classe audiovisual volta a reunir de forma abrangente para reivindicar políticas públicas que sejam mais inclusivas. Se, no III CBC, o resultado foi a criação da Ancine, desta vez, poderia ser uma espécie de Ancine 2.0. A Ancine, que completou 20 anos em 2001, foi fundamental para que o audiovisual brasileiro pudesse crescer e se diversificar, e permaneceu viva, aos trancos e barrancos, mesmo diante dos ataques institucionais do governo Bolsonaro, comprovando sua solidez institucional. Mas agora é hora de avançar ainda mais, na construção de uma Ancine 2.0, que seja mais aderente ao projeto político de um novo país, que compreenda a cadeia criativa do audiovisual por uma perspectiva mais ampla e seja mais inclusiva quanto à diversidade cultural de nossos Brasis.

Os desafios de reconstrução da Ancine são muitos e diversos. É preciso lembrar que, como parte do modelo de agências reguladoras, a Ancine é composta por uma diretoria colegiada de quatro membros, com mandatos fixos, três dos quais foram nomeados em 2022 para um mandato de cinco anos. Isto é, os atuais três diretores da Ancine permanecerão no cargo até o final do governo Lula (2026). No entanto, o atual Diretor-Presidente da Ancine, Alex Braga, um Procurador Federal, apesar de conduzido no governo anterior, vem sinalizando indiretamente que poderá dialogar com as tratativas do novo governo. De todo modo, o novo governo poderá nomear apenas um dos quatro diretores da Ancine, que, em tese, poderá permanecer como minoritário. Essa tensão insere novos capítulos na conturbada relação de autonomia ou dependência das agências reguladoras em relação aos ministérios, algo já presente na trajetória de nossa política audiovisual nas últimas duas décadas. Por outro lado, é preciso pensar a política audiovisual para além da Ancine, não apenas na Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura, mas em outros órgãos transversais, e também na própria relação entre entes federativos, como propõe a Lei Paulo Gustavo, que colocará perspectivas imediatas de financiamento para o setor já neste primeiro semestre de 2023.

A Carta de Tiradentes evidencia a retomada de um esforço de remobilização do cinema brasileiro: a união de agentes de diferentes origens e perspectivas para apresentar uma proposta conjunta, formada a partir da soma de diferentes contextos, realidades e projetos. Essa remobilização é fundamental para esse esforço de reconstrução. Ao mesmo tempo, a Mostra de Tiradentes é o local ideal de produção da Carta, não apenas por abrir o circuito dos festivais em janeiro, mas especialmente por sua trajetória de local privilegiado de encontros e debates em torno das ideias de renovação e pensamento sobre os rumos do cinema brasileiro contemporâneo.

Ao trazer a Ministra Carmen Lúcia para abrir os trabalhos do Fórum, a Mostra de Tiradentes evidencia que está articulada a outras forças políticas para além do Ministério da Cultura, uma vez que essa transversalidade é fundamental para a maior reverberação das pautas da Cultura e o audiovisual em todas as esferas de governo. A Carta é apenas um dos frutos de um esforço de remobilização e reconstrução que precisa ser aprofundado e fortalecido de modo contínuo.

* Marcelo Ikeda é professor do Curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal do Ceará (UFC). Autor dos livros “Cinema brasileiro a partir da retomada: aspectos econômicos e políticos” e “Utopia da autossustentabilidade: impasses, desafios e conquistas da Ancine”. Atua também como realizador, crítico e curador.

Leia a Carta de Tiradentes  pelo link abaixo:

 

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