Os Fabelmans
Sobre o delírio e o prazer em se permitir ser embalado e embalar pela arte
Por Luiz Joaquim | 10.01.2023 (terça-feira)
First things first, como dizem os gringos:
Aquele que for a uma sala de cinema para ver Os Fabelmans (The Fabelmans, EUA, 2022) – entrando em cartaz nesta quinta-feira (12) – terá como primeira imagem projetada na tela a de seu diretor, Steven Spielberg, te olhando direto no olho e agradecendo por você ter saído de casa e permitido se submeter a… palavras dele: inigualável experiência de ver um filme imerso num ambiente coletivo sem comparação.
O cineasta que, com os seus filmes, acelerou o coração de pelo menos três gerações de humanos nesse mundo aproveita também para deixar, na mensagem gravada, o explícito recado de que Os Fabelmans é o mais pessoal de todos os seus trabalhos. Uma obra feita a partir não de metáforas, mas de memórias.
Atentem para o fato de que Spielberg não está chamando ninguém para ir ao cinema. Ele agradece por você já estar lá. É um gesto de generosidade de alguém que acredita no cinema. Há, evidentemente, um efeito comercial num discurso tão delicado como este – e o fato de o estarmos colocando em destaque na abertura deste texto já é prova disso –, mas isso não anula em nada a autenticidade de um gesto comovente, humilde até, de um dos maiores homens de cinema do mundo.
FABELMANS – “Sabe o que mais sinto falta no piano? Me sujeitar à partitura. Me deixar levar por aquele pequeno mundo de segurança”, diz Mitzi (Michelle Williams) para o marido Burt (Paul Dano). A fala da frustrada dona de casa, que possuía na juventude o potencial para ser uma grande pianista, parece sintetizar com uma nitidez dorida, de tão certeira, quando o assunto é o artista (por que não dizer ‘qualquer pessoa’?) se perder na arte. Quando o assunto é a alegria de esquecer as imperfeições da vida enquanto se mergulha no indescritível jubilo – ou dor – de criar algo (mesmo que esse algo seja um texto, como esse que você lê agora).
No caso de Mitzi a arte em questão é a música, no caso de seu primogénito Sammy (Mateo Zoryan, criança / Gabriel LaBelle, adolescente), o cinema.
Spielberg, 76 anos recém completos, tinha 5 anos de idade em janeiro 1952, ano em que The Fabelmans inicia. A primeira tensão exposta no enredo é a do menininho Sammy, com seus enormes olhos azuis, sendo tranquilizado pelo pai Burt e pela mãe Mitzi na fila de um cinema. Ele está prestes a ver seu primeiro filme (é O maior espetáculo da Terra) e teme porque “filmes são como sonhos” e “as pessoas são gigantes na tela”.
Já aqui, Spielberg entoa a distinção que marcará Burt e Mitzi ao longo das ligeiras 2 horas e 31 minutos de duração d’Os Fabelmans. Com o pai sendo o calculista cientista que é – explicando o cinema pela mecânica do efeito dos 24 quadros por segundo na retina -, e com a mãe sendo a parte lúdica do casal, lembrando ao menino que filmes são sonhos sim, mas que você nunca os esquece.
A sessão do filme de Cecil B. DeMille cria uma obsessão no menininho, a de querer reter (ou entender, ou controlar) uma sequência muito forte de O maior espetáculo da Terra: a do acidente de trem. Coisa que irá tentar pôr em prática com o seu trenzinho elétrico, mas só conseguirá com uma dica da mãe, atenta à curiosidade do filho.
Sammy deve registra o acidente simulado no brinquedo, diz ela, com uma câmera 8mm que ganhou e, assim, evitar quebrar o brinquedo pela repetição do acidente e, consequentemente, evitar de levar bronca do pai.
Como resultado dessa primeira experiência de Sammy dominando/segurando o tempo através da imagem em movimento, Spielberg nos dá, desde já, uma cena inesquecível e profundamente tocante para aqueles que têm adoração pelo cinema: a do menininho projetando nas próprias mãos as imagens de seu primeiro filme.
É disso que se trata a trajetória de Sammy, que Spielberg não temeu carregar nas tintas (no caso, nos dando uma bela pintura), para falar de sua própria história como um jovem judeu que sofreu preconceitos ao chegar na Califórnia, além da pressão paterna para que fizesse na vida “algo real, e não imaginário”.
É o cinema que o salva. É esse mesmo cinema, que o já adolescente Sammy produz amadoristicamente em 8mm com um bando de amigos, que irá fazê-lo acordar para a força que ali está. Uma força que ele domina com claro talento para fazer as pessoas sorrirem ou se comoverem conforme ele decidir em sua pequena coladeira de montagem.
E é quando Sammy, num acampamento com os pais, as irmãs mais novas Reggie (Birdie Borria) e Natalie (Alina Brace), além do melhor amigo de seu pai, Bennie (Seth Rogen), decide registrar a tudo ali com a sua câmera que ele também descobre que o cinema pode ‘enxergar’ o que o olho não vê.
E no melhor estilo antonionesco (ou DePalmanesco, como preferirem), durante a montagem desse filminho caseiro, Spielberg apresenta Sammy descobrindo um segredo familiar que irá afetar profundamente a relação de todos ali.
Este é um dos momento-chave entre mãe e filho. Um outro acontece quando Sammy projeta só para Mitzi a sequência proibida que registrou acidentalmente. Em ambos casos Spielberg nos reforça, com tocante maestria, o seu recado de que o melhor do cinema prescinde de palavras.
Michele Williams (indicada como atriz em Drama para o Globo de Ouro 2023) como Mitzi segura o tom certeiro entre a contração de uma artista reprimida pela delicadeza e a adoração de seu marido por ela, e o ludismo de quem é frágil e sensível ao belo e ao gracioso na vida.
Numa dessas demonstrações, Spielberg cria uma das cenas mais arrebatadoras em Os Fabelmans, protagonizada por Mitzi dançando diante dos faróis do carro enquanto seu filho imortaliza aquela beleza. Num certo sentido, faz paralelo a sequência final de Meu amigo Hindu (de Hector Babenco), com Bárbara Paz dançando na chuva.
São formas distintas de representação do belo para cineastas declamarem suas poesias tal qual uma ode ao cinema.
E é arte.
O filme Os Fabelmans concorre ainda ao Globo de Ouro 2023 nas categorias direção, roteiro (Spielberg e Tony Kushner) e trilha sonora (provavelmente a última de John Williams para Spielberg). A cerimônia de premiação ocorre hoje (10) no Bervely Hilton hotel, em Los Angeles.
Leia também sobre Entre o amor e paixão (Take this Waltz, 2011), de Sarah Polley com Michelle Williams e Seth Rogen. Texto no link abaixo.
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