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Um ano no Cinema São Luiz (Recife)

Artigo, em primeira pessoa, sobre memórias e ações de Luiz Joaquim a frente do São Luiz e do Mispe.

Por Luiz Joaquim | 06.03.2023 (segunda-feira)

2022, janeiro. O ano iniciava mais uma vez pelo seu milenar calendário cristão e eu iniciava um novo desafio profissional, assustador e tentador ao mesmo tempo: assumir, simultaneamente, a curadoria do majestoso Cinema São Luiz, no Recife, e a direção do Museu da Imagem e do Som de Pernambuco (Mispe).

Ambas instituições gigantescas em seus serviços para a sociedade pernambucana, numa primeira interpretação, e para a cultural internacional, eu diria, sob uma perspectiva mais ampla se formos considerar com seriedade o que representam a arquitetura do nosso Cinema São Luiz e as cerca de 22.000 peças englobando o campo do audiovisual, da música, da fotografia e da literatura, entre outros, que formam o acervo do Mispe.

Cine São Luiz: Arquitetura que encanta

Para além do óbvio descrito acima, o São Luiz é uma entidade cultural em si, iluminando os pernambucanos há sete décadas, e o Mispe há mais de 50 anos. Como se não bastasse, ambas instituições, pela gestão pública, contaram com gigantes da cultura no passado em nosso Estado à frente de sua coordenação.

No Mispe, Francisco Bandeira de Melo (seu idealizador e criador), Celso Marconi e Geraldo Pinho, só para citar alguns; e no São Luiz, além de Pinho, Lula Cardoso Ayres Filho.

Não era pouco, portanto, a responsabilidade que decidi encarar a convite do então presidente da Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (Fundarpe), Marcelo Canuto, a quem agradeço publicamente pela confiança.

O conforto que me acariciou ao chegar nos dois ambientes foi o calor e o sorriso de ambas as equipes que compõem as duas casas, quando me acolheram com a disposição e a disponibilidade absolutas para dar continuidade ao memorável trabalho realizado pelo querido Geraldo Pinho, quando nos deixou em novembro de 2021.

No Mispe, falo de Pedro Aarão, Edilma Medeiros, Michelly Cross e Norma Suely de Melo. No São Luiz, Gustavo Coimbra, Arthur Abdon, Joyce Suellen, Eliane Muniz, Arthur Frederick, Bruno Alves, João Bosco e Miguel Tavares, todos compondo o operacional da sala, além, claro, da turma que compõe a segurança e a limpeza do espaço.

São profissionais que extrapolam em muito o comprometimento técnico e trabalhista exigido pela lei. Cada um ali, sem exceção, parece tomar o São Luiz e o Mispe como uma missão de vida.

Tal relação amorosa era algo que já eu percebia intuitivamente quando frequentava o São Luiz como qualquer espectador recifense e pelas conversas com o amigo Geraldo Pinho além de Kleber Mendonça Filho e Emilie Lesclaux que, juntos, tocam anualmente o Festival Internacional Janela de Cinema na sala da rua da Aurora.

A diferença agora é que eu estava no interior do processo, e passei a ser testemunha viva da devoção desses profissionais.

Devo dizer que de todas as aberturas dadas pelos dois grupos, a mais generosa estava não em acreditar que pudéssemos promover a continuidade do que já havia sido bem construído, mas sim para o que poderíamos construir com uma nova cara, concordando com as inovações que imaginei para a programação do São Luiz e para promover movimentos urgentes a serem dados pelo bem do Mispe.

No caso do São Luiz, uma das primeiras iniciativas (mesmo antes da reabertura do espaço) foi criar, gerenciar e alimentar diariamente uma identidade oficial do cinema nas redes sociais.

Surgiu, então, no Instagram, Twitter e Facebook o perfil @cinesaoluizreal, pelo qual o seguidor poderia participar de sorteios com brindes e, principalmente, saber de todos movimentos e detalhes de nossa programação com segurança. O serviço funcionou bem, atraindo, no caso do Instagram, mais de 12 mil seguidores em pouco mais de um mês de lançado.

Do ponto de vista da funcionalidade da sala, uma das inovações foi negociar a transferência do dia de folga da equipe na semana da tradicional segunda-feira para a terça-feira.

Pessoas numa segunda-feira à tarde de 2022 querendo comprar ingresso num cinema no centro do Recife.

Assim, com o São Luiz passando a funcionar também no primeiro dia útil da semana passaríamos a disponibilizar para os frequentadores uma alternativa boa e barata de programação cinematográfica também na segunda-feira, uma vez, que nestes dias, os Cinemas da Fundação Joaquim Nabuco – salas de personalidade curatorial e valor de ingresso irmanados ao São Luiz – estão de portas fechadas.

Estabelecemos também como novidade, sempre com o aval compreensivo da equipe, a definição de uma sessão fixa, aos domingos, iniciando às 10h ou às 10h30, ou às 11h. Foi a Sessão família, dedicada a títulos infanto-juvenis, mas que poderia ser apreciada por toda a família.

Era mais uma maneira de dar ao Recife uma alternativa cultural para os pequenos no domingo pela manhã, atrelada a uma educação audiovisual para eles e, principalmente, fazer os pais levarem suas crianças para experienciar como é estar no palácio da rua da Aurora vendo um filme. Proporcionar-lhes um primeiro e inesquecível alumbramento pela arte do cinema e da arquitetura.

Chaplin e Buster Keaton na última “Sessão Família” de 2022

O primeiro título da Sessão família – a animação As aventuras de Gulliver, de Ilya Maksimov – tinha um velado cunho político. A produção vinha da Rússia e foi feita em co-produção com a Ucrânia. Era um produto realizado por uma comunhão política entre dois países que, naquela mesma semana, começavam a se digladiar numa guerra que, ainda não sabíamos, iria afetar o mundo inteiro por mais de um ano.

Foi criada, ainda, a Sessão Geraldo Pinho, esta não vinculada à personalidade do filme, mas ao acesso popular para assisti-lo. O nome da sessão representava o ingresso único de R$ 5 a qualquer filme em cartaz na primeira sessão das segundas-feiras.

A iniciativa visava apresentar aos frequentadores mais jovens uma das bandeiras do antigo programador: fazer o maior número de pessoas, principalmente a população mais carente, ter acesso ao bom cinema.

A propósito do mestre Geraldo, ele dizia que o São Luiz não era um cinema de rua, mas um ‘cinema de calçada’, pelo qual tinha que se conquistar o público um por um, incluindo aqueles que caminham pela Aurora. Tal qual as lojas de roupa na rua da Imperatriz, com os lojistas tentando seduzir, ao microfone, os transeuntes com suas ofertas.

A diferença é que a oferta do São Luiz é a arte, sendo esta, comumente, um filme nem sempre fácil, mas sempre valioso.

Esse, a propósito, é mais um indício do tamanho do desafio para aquele que decidisse assumir a sua programação. Como colocar quase mil pessoas para ocupar uma mesma sessão no São Luiz?

Poucos curadores em Pernambuco podem afirmar que conquistaram a alegria simbólica de ocupar, com o seu trabalho, todas as poltronas do São Luiz numa única sessão. No nosso caso, aconteceu na pré-estreia exclusiva para o Cinema São Luiz de Medida provisória, de Lázaro Ramos, no 4 de abril… uma segunda-feira.

uma única sessão de cinema, 992 pessoas em um só espaço e a catarse da libertação

Por um esforço pessoal, e com a anuência e cooperação irrestrita do administrativo da Fundarpe, pudemos bancar a vinda do diretor do filme para um bate-papo com a plateia ao final da sessão – e de quebra ganhamos a presença do protagonista Alfred Enoch (este por conta da distribuidora do filme).

O resultado foi, nas palavras do próprio Lázaro e Enoch, uma sessão inesquecível, catártica, que, de fato, atraiu uma multidão ao cinema da Aurora, e fez outra, com cerca de 300 pessoas, do lado de fora esperando o milagre de uma brecha para poder entrar no São Luiz já com suas 442 poltronas do térreo e as 500 do balcão totalmente ocupadas.

Isto acontecendo em um início de abril ainda desconfortável para muitas pessoas pela então recente terceira onda da pandemia da Covid-19 no Brasil.

Tanto sucesso chamou a atenção do Portal do Exibidor, periódico nacional especializado e dedicado às empresas de exibição no Brasil, com uma reportagem rendendo grande destaque para o São Luiz.

Ao final da temporada de seis semanas, Medida provisória havia levado 10.029 espectadores ao São Luiz.

Lázaro, Luciana, em noite inesquecível

O evento atraiu não apenas populares, mas também notáveis na sociedade, como a atual Ministra da Ciência, Tecnologia e Inovação do governo Lula, Luciana Santos (PCdoB). Na verdade, todos estavam ansiosos não apenas para conhecer o fictício país distópico apresentado pelo filme, mas também para ouvir e trocar ideias com Lázaro, Enoch e o professor Erico Andrade, psicanalista e filósofo local convidado para integrar o debate.

Enoch, Lazaro, Luiz Joaquim e o prof. Erico Andrade

A propósito do debate, este foi uma das implantações promovidas em 2022. Incrementar à agenda da programação uma constância de sessões comentadas, como a realizada por ocasião do Dia Internacional da Mulher. Após a sessão do doc. Precisamos falar de assédio, de Paulo Sacchetta, a jornalista convidada Luciana Veras mediou o tema provocado pelo filme com as realizadoras Cecília da Fonte, Bruna Leite e Cynthia Falcão.

Bruna, Luciana, Cecília, Cynthia: Debate sobre assédio sexual

Antes disso, a primeira sessão comentada já havia dado as caras na semana de reabertura, entre 24 de fevereiro a 2 de março, após o São Luiz passar quase dois anos fechado em função da pandemia da Covid-19.

Ele aconteceu na pré-estreia do filme pernambucano Seguindo todos os protocolos, de Fábio Leal, sendo aquela a sua primeira exibição numa sala de cinema. O diretor participou de um debate após a sessão de seu filme, que só viria a entrar em cartaz 4 meses depois, em junho.

Com grande antecipação (de 5 meses antes de entrar em cartaz, em julho) também exibimos, em caráter de pré-estreia naquele fevereiro da reabertura, o iraniano Um herói, de Asghar Farhadi.

Os filmes de Farhadi, o de Fábio Leal e As aventuras de Gulliver acompanharam outros três longas-metragens naquela semana de reabertura, como alternativas diversificadas para qualquer público que estivesse ansioso para retornar ao São Luiz.

“A Felicidade das Pequenas Coisas”: um pequeno fenômeno de bilheteira no São Luiz

Foram eles o francês A ilha de Bergman, o documentário brasileiro Rio de vozes e o butanês A felicidade das pequenas coisas, com este último tornando-se um pequeno fenômeno de público no São Luiz, público que retornava à sala para rever o filme mais de uma vez.

O desenho curatorial da primeira semana – contendo filmes pernambucanos, brasileiros, títulos de diretores aclamados e premiados em festivais importante, além de obras pouco conhecidas, oriundas de países remotos e de programação infantil fora do padrão hollywoodiano – dava, portanto, um sinal do que estava por vir na nossa gestão, com um variado mosaico de possibilidades da cultura cinematográfica para todos os gostos do espectador.

 

Faltou ainda inaugurar uma outra linha de programação que só conseguimos implantar no 2 de abril: a mensal Sessão memória, uma faixa dedicada a filmes não-contemporâneos, ou que olhassem para o passado, e que mereciam ser revistos e discutidos sob a luz da atualidade.

A sessão inaugural, numa tarde de sábado, foi com Lavoura arcaica (2001), de Luiz Fernando Carvalho, numa projeção em 35mm de cópia restaurada, com comentários num debate pós-sessão, com a doutora em Teoria Literária, Renata Pimentel. No mês de maio, exibimos, também em 35mm, O dinheiro (1983), de Robert Bresson, seguido de um bate-papo com o cineasta Marcelo Lordello.

A terceira Sessão memória já tinha data e título. Seria no primeiro sábado de junho, com Lancelot do lago, em 35mm, também de Bresson, sendo Hilton Lacerda o nosso debatedor de luxo.

Cópia em 35mm: “O Dinheiro”

Entretanto, as chuvas intensas no final de maio pararam todo o Recife. O São Luiz, que precisaria fechar no início de junho em função de uma reforma para modernizar o ar-condicionado e o sistema elétrico do septuagenário cinema, teve o fechamento das portas antecipado pela Fundarpe. Interrompeu, assim, sua programação no 25 de maio de 2022, uma quarta-feira, e assim segue até a presente data.

Naqueles três meses do ano passado, que tive a alegria de cuidar da personalidade do São Luiz, exibimos 26 filmes.

Foram 22 longas-metragens, três médias-metragens (o doc pernambucano O comunicador da maioria e os clássicos silenciosos, em DCP, Campeão de Boxe, de Chaplin, e Bancando o águia, de Buster Keaton – estes dois compondo a última Sessão família), um curta-metragem (Noite de sexta, manhã de sábado, de Kleber Mendonça Filho, que acompanhou, por uma semana, as sessões de A felicidade das pequenas coisas) e nove debates pós-sessão.

Um total de 15.601 espectadores privilegiaram o São Luiz entre fevereiro e maio de 2022 e, com a exoneração coletiva assinada pelo novo governo de Pernambuco na primeira semana de janeiro do corrente ano, eu voltei a me relacionar com o São Luiz apenas como espectador.

Espectador que torce para que a nova gestão da Fundarpe e da Secretaria de Cultura do Estado olhe para o Cinema São Luiz com a seriedade e comprometimento que o nosso palácio da rua da Aurora merece e, desejando, verdadeiramente, claro, muito boa sorte e sucesso ao próximo programador do nosso maior e mais lindo cinema.

MISPE – Quando cheguei ao Museu da Imagem e do Som de Pernambuco, há 15 meses, então na função de gestor, me deparei com uma condição exasperante no que se refere à infraestrutura do espaço reservado ao Mispe na Casa da Cultura e ao acondicionamento de seu acervo.

Sempre que curiosos me procuravam para indagar sobre o Museu, habituei-me a dizer sinteticamente que ali “não havia urgências, porque tudo é urgente”. Hierarquizar aquilo o que socorrer em primeiro lugar no Mispe já é um desafio à parte, que requer não apenas conhecimento técnico no campo da preservação e da catalogação, mas também um jogo de cintura político para sensibilizar aquele$ que realmente têm o poder pela caneta.

Por uma sugestão minha dada ao então presidente da Fundarpe, Marcelo Canuto, articulamos ambos um primeiro movimento em direção à mudança de endereço do Museu.

O enorme e valioso acervo iria para um outro prédio mais central na cidade e, principalmente, mais adequado a sua natureza museológica – com recintos melhor definidos em suas funções de salvaguarda do acervo, de exposição permanente e temporárias ou temáticas.

A ação iria ocorrer a partir de uma parceria firmada com uma importante Instituição de Ensino Superior do Recife, mas não passamos tempo suficiente no cargo para desdobrar e afinar a negociação já iniciada para, a partir daí, efetivar a parceria.

Em 2022, como diretor do Mispe, além de atender uma meia dúzia de produtores e pesquisadores ajudando-os no acesso a filmes, áudios, cordéis e fotografias raras para enriquecer seus projetos, também tive a honra de ser convidado para integrar uma mesa de debate naquele que é certamente um dos mais importantes eventos do segmento no Brasil: o 17º Encontro de Arquivos e Acervos Audiovisuais Brasileiros.

Organizado pela Associação Brasileira de Preservação Audiovisual (ABPA), o evento aconteceu em junho na 17ª Mostra de Cinema de Ouro (CineOP), com as maiores autoridades do segmento no país.

Integrando a mesa Memória audiovisual brasileira: Resistência e resiliência, tive a chance de estar ao lado e compartilhar sobre as dificuldades do museu pernambucano com a colega Maria Dória G. Mourão (Cinemateca Brasileira), e com todos os especialistas da plateia.

O encontro serviu não apenas para sensibilizar os membros da ABPA com relação ao Mispe, como também para ampliar a nossa rede de potenciais parceiros para colaborar no resgate do museu pernambucano.

Agora, como um cidadão sem nenhum vínculo profissional com o Mispe, só podemos seguir torcendo pelo futuro daquela instituição. Uma casa constituinte de um acervo tão valioso que não se pode estimá-lo em valores monetários. Isso porque o acervo do Mispe somos nós mesmos. É a nossa história, nossa identidade. E se não pudermos cuidar de nós mesmos, alguém poderá?

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