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Críticas

Segredos de Um Escândalo

O estudo de uma atriz sobre uma atriz (ou, a metamorfose tardia de uma mariposa)

Por Luiz Joaquim | 16.01.2024 (terça-feira)

Em algum dia do futuro, quando Segredos de um escândalo (pobre título nacional para May december, EUA, 2024, de Todd Haynes) já tiver sido esquecido e depois voltar a ser redescoberto, alguns bons brasileiros deverão relacionar seus créditos de abertura com os de Inocência, obra-prima de Walter Lima Jr., realizada 41 anos antes. E perceberão que o trabalho nacional tem uma elegância e beleza cinematográfica que o estrangeiro de Haynes apenas tenta alcançar.

Este prólogo serve também para lembrar que, ainda que ambas aberturas foquem e se deslumbrem (e procuram nos deslumbrar) com a delicadeza da larva que deixa o casulo para ganhar o mundo como uma borboleta, a parábola de um e do outro filme procuram focar metamorfoses distintas.

Enquanto em Inocência a transformação dá dicas de uma jovem que está a caminho, pelo amor, de se tornar uma mulher, em Segredos… observamos a tentativa de libertação de Joe (Charles Melton), um homem adulto de 36 anos que age como um adolescente preso a um relacionamento abusivo com Gracie (Julianne Moore), mulher mais velha, com idade suficiente para ser sua mãe. Na verdade, Gracie tem um filho de idade próxima a de Joe.

Assim sendo, Inocência nos dá uma dramaturgia embalada pela leveza, sem esquecer da tensão própria em qualquer mutação, enquanto que o filme de Haynes nos entrega pura tensão psicológica e sexual, ao nos mostrar Joe na tentativa de se abrir para o mundo, deixando para trás a vida pela qual foi entrelaçado, ainda aos 13 anos de idade, na rede urdida pela dominadora Gracie.

Haynes, entretando, deixa brechas para desconfiarmos das decisões de Gracie, tanto no passado quanto no presente, o que se configura, em termos de construção de um personagem, num baita presente para Moore e Natalie Portman, com esta última na pele de uma atriz de tevê chamada Elizabeth.

É por Elizabeth, a propósito, que vamos entrar na vida incomum de Gracie e Joe, já casados há mais de 20 anos, com filhos indo para a faculdade e ainda hoje assombrados pelo passado, cujo início do romance ganhou ares de escândalo nacional, levando Gracie a, inclusive, cumprir pena numa prisão.

Elizabeth (Portman) descobre uma complexidade igualmente intrigante em Joe (Melton)

Segredos… se concentra na semana em que Elizabeth compartilha os dias ao lado da família de Gracie e Joe. Ela estuda a personagem que irá interpretar num filme encomendado para a tevê. Elizabeth quer dar dignidade a essa complexa mulher que enfrentou o mundo para seguir ao lado do amor de sua vida, Joe, criando os filhos que juntos conceberam.

Mas o que a atriz encontra nessa semana é algo um pouco mais intrigante. A complexidade está não apenas em Gracie, mas naquilo em que se transformou Joe. Ele tem a mesma idade de Elizabeth, o que torna a atriz automaticamente mais empática a sua condição. A de um homem reprimido pela sombra dessa esposa que o controla como quem controla um filho.

Haynes rascunha muitas esferas psicológicas dentro desse enredo – há o problemático filho de Gracie, do casamento anterior, por exemplo, e a própria confusão emocional em que se mete Elizabeth – mas, acima de tudo, este universo criado em Segredos de um escândalo é como um Shangri-Lá para as duas atrizes que reinam soberbas aqui, em particular Portman.

Segredos… torna-se quase um filme obrigatório para quem quer enveredar por esse caminho profissional, da atuação, pois, vejam bem: o que se apresenta aqui é Elizabeth estudando uma personagem “real” (Gracie) enquanto já estamos (nos espectadores) estudando uma outra personagem, a própria Elizabeth – uma atriz que atua em duas camadas: a da dramaturgia proposta pelo enredo do filme e a da imagem que ela construiu para a família de Gracie e porque não dizer, numa terceira camada, a da imagem que construiu para si própria.

Quem estuda quem?

Haynes, sempre elegante, cria aqui um dos momentos mais sublimes desse encontro/desafio. Diante de um espelho de banheiro em um restaurante. Primeiro, ambas olham para o próprio reflexo enquanto falam com alguma tranquilidade. “Alguma” porque, naquela altura, a tensão já está instalada entre as duas e, nesse momento, é fácil perceber que nossos olhos de espectadores irão se alternar inquietos entre o rosto de Moore e o de Portman, procurando dicas sobre o que elas estão passando internamente.

Logo depois, quando Gracie começa a maquiar Elizabeth, temos uma olhando diretamente para a outra e a cena vai para um outro nível de troca entre as atrizes. A tensão ganha nova textura, sexual, inclusive, com Gracie acarinhando os lábios de Elizabeth com o seu batom. Tudo isso sem cortes, close-up, movimentos de câmera ou zoom.

São apenas duas atrizes em estado de graça, se desafiando lindamente, com um belo texto na ponta língua e da epiderme.

O nome é cinema.

 

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