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Críticas

Clube Zero

Um mergulho perturbador na manipulação e no vazio da sociedade contemporânea

Por Paulo Henrique Silva | 27.04.2024 (sábado)

Há três questões que percorrem o filme “Clube Zero” que estão muito interligadas e que pautam a sociedade hoje. A primeira delas é a falta de comunicação entre pais e filhos, um conflito geracional que se expõe cada vez mais devido às redes sociais.

Embora importante, como justificativa para a rebelião que alguns alunos promovem contra a forma de educação que recebem, não é esse o tema que movimenta o longa da cineasta austríaca Jessica Hausner, exibido na edição 2023 do Festival de Cannes.

Em ‘Clube Zero’, um culto estranho surge em favor de uma prática de ‘fotossíntese humana’

Os discentes aderem a um programa radical de dieta, em que abdicam totalmente da alimentação para viver, valendo-se apenas da luz solar como fonte de energia – teoria conhecidamente falsa, chamada de fotossíntese humana ou respiratorianismo.

Curiosamente, o filme chama a atenção por não buscar comprovar a ineficácia do conceito ou a mente doentia de quem defende essa ideia. Não é uma obra de denúncia, que deseja tratar dos exageros do culto à comida orgânica.

Os momentos finais até deixam em aberto essa questão, sem transformar a escolha dos alunos numa grande tragédia. O que importa para Jessica Hausner é a manipulação, o poder de atração exercido pela professora Novak, vivida por Mia Wasikowska.

Com um comportamento estranho desde que a vemos pela primeira vez, vestindo camisas do tipo polo, com todos os botões fechados, ela exibe um grande domínio sobre os seus alunos, a ponto de os fazerem abortar hábitos comuns.

O filme ‘Clube Zero’ explora a lacuna de propósito que permeia tanto as gerações quanto as ideologias, criando um terreno fértil para o surgimento de líderes que promovem a segregação através de suas narrativas.

Por que Novak consegue virar de tal forma a cabeça dos jovens adeptos de sua dieta, a ponto de lançá-los contra os pais e a escola? O discurso dela não é muito diferente daqueles que pregam uma nova política, contra um sistema que tira a sua liberdade de escolha e de expressão.

A suposta professora entra em cena como uma novidade capaz de mudar a tediosa rotina dos jovens, transformando a relação com os pais – estes não são más pessoas, fazendo o típico papel de pai e mãe, seguindo certo modelo educacional.

Poderia-se dizer, por ser uma escola de elite, que esses pais são abastados. De fato, alguns são, mas o roteiro adiciona um garoto bolsista, criado sozinho por sua mãe. Ou seja, essa voz diferente parece não escolher classes sociais.

A apatia inicial dos pais está menos atrelada à relação com os filhos (há sim problemas, como o garoto cuja família está na África, comunicando-se apenas por videoconferência) e mais em uma sociedade pouco participativa e muito permissiva.

A atriz Mia Wasikowska, interpretando a professora Novak, transmite a mesma estranheza presente em personagens de obras de terror.

Essa maneira como assistem, sem muita reação, a interferência de Novak na vida dos filhos é sublinhada pela fotografia, por meio da movimentação de câmera, sempre a uma certa distância dos personagens, pelas cores pastéis do figurino e objetos de cena e ambientes retangulares.

Num determinado instante, numa das melhores cenas do filme, alguns dos pais se veem balançados pela determinação dos filhos, ainda que muitos dos argumentos dos garotos pudessem ser facilmente refutados, se colocassem outra opinião tão forte quanto a de Novak.

É disso, afinal, que “Clube Zero” trata: sobre um vazio, que pode ser existencial, geracional ou ideológico, que vem permitindo que apareçam lideranças com discursos segregacionistas, baseados em distorções, que não seriam aceitos em outra época.

Atriz que interpretou a Alice dos filmes de Tim Burton, Mia Wasikowska carrega a mesma estranheza dos personagens que, em obras de terror, escondem seus verdadeiros intentos sob a pele da normalidade, como os idosos de uma seita satânica em “O Bebê de Rosemary”.

Esse elemento estranho também está presente na trilha sonora, com sons que repetidamente nos incomodam, e no próprio roteiro, que não faz qualquer questão de localizar a história no espaço e no tempo, como se lançasse num terrível pesadelo.

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