Kneecap
O político rap nacionalista irlandês
Por Ivonete Pinto | 23.09.2024 (segunda-feira)
LEEDS (ING.) – Eis uma produção em que o contexto torna-se indispensável e a pesquisa extrafílmica crucial. Sintetizar o conflito entre as duas Irlandas e sua relação com o Reino Unido é tarefa inglória para quem não tem familiaridade com a luta pelos direitos civis travada ali. Cumpre lembrar apenas que a República da Irlanda, conhecida como Irlanda, é um país independente e membro da União Europeia. Já a Irlanda do Norte faz parte do Reino Unido, junto com a Inglaterra, a Escócia e o País de Gales. Uma guerra civil de caráter sobretudo religioso (católicos na Irlanda do Sul e protestantes na do Norte) partiu o país em 1922. Antes de tudo, desde o século XVI a coroa inglesa governa a região, gerando movimentos de independência. Não à toa, mesmo que as duas estejam divididas, Kneecap (Rich Peppiatt, 2024) é uma coprodução entre elas (com o British Film Institute), já que a questão da língua as une. E a linguagem é o tema central nesta história de dois rappers revoltados e um professor de música que insistem em falar irlandês. Sim, falar irlandês é ato de rebeldia.
Um dos pontos altos neste filme, é que a mistura entre comédia-dark, drama político-cultural e musical-lisérgico funciona. O quesito comédia, infelizmente, funciona menos para os não nativos. Mesmo que os diálogos e letras de música tenham legenda em inglês, muito nos escapa. Já no irlandês, ou gaélico, tudo nos escapa. Língua de origem celta, é falada por cerca de 40% da população apenas, em função do domínio secular da Inglaterra, que com seus argumentos bélicos fez o inglês ser predominante. Assim como a Inglaterra forçou o inglês na Nova Zelândia, em detrimento do maori, nas Irlandas o mesmo acontece. Como a língua é uma questão de poder, podemos ver a relevância do gesto do grupo de rap Kneecap.
A começar pelo título. “Kneecap” se refere a ter a rótula dos joelhos quebrada, ou esfacelada, pois tiros eram dados muitas vezes para este fim. Consta que foi praticado até pelo IRA (Exército Republicano Irlandês) contra irlandeses traidores. Vale avisar que não dá para ficar usando o termo kneecap livremente porque pode ser ofensivo.
Importante frisar, o nome da produção é o mesmo do grupo e tem no elenco dois rappers da banda real, Liam (Liam Ó Hannaidh) e Naoise (Naoise Ó Caireallain), interpretando personagens ficcionais. Quase biografia, quase doc-fic. O humor escrachado característico das músicas, associado aos temas republicanos, inspiraram o filme de estreia do diretor Rich Peppiatt (ex-jornalista inglês), no qual os dois personagens crescem juntos em um gueto católico da capital Belfast, onde se fala irlandês.
Fassbender – O conhecido ator irlandês Michael Fassbender (Arló Ó Cairealláin) faz o pai de um deles e na primeira cena diz ao filho: “Cada palavra de irlandês falada é uma bala pela liberdade irlandesa”. O sentido político do filme fica assim demarcado e em seguida veremos os amigos aprendendo a língua com Arló, ex-soldado republicano que para escapar da prisão simula a própria morte.
Outro personagem importante é o professor de música JJ (JJ Ó Dochartaigh) chamado pela polícia quando um dos jovens é preso acusado de vender drogas. Ele deve traduzir o interrogatório, já que o preso finge não saber inglês. A sequência é hilária: em um dado momento o professor percebe que o caderno de poemas do rapaz escondia uma folha com selos de ácido. Ele consegue tirar o caderno das vistas da policial e inicia com isso sua relação de amizade com o acusado.
O professor, até então meio careta, se junta à banda Kneecap ao se dar conta do conteúdo político-bombástico das letras. Um ativismo que lhe agrada. Sempre usando a balaclava, o gorro colorida que deixa só os olhos de fora (ele não pode ser reconhecido), o professor é introduzido ao não menos colorido mundo do LSD. Nos primeiros shows em pubs com meia dúzia de gatos pingados, e nos de grande sucesso de público também, o ácido é o combustível para a linguagem das sequências musicais (as letras sempre com legenda em inglês, thanks God). Um psicodelismo de imagens transborda através de interferências em animação.
As bad trips são engraçadas e cheias de referências, sendo as mais notáveis às que remetem ao impagável Transpotting (Danny Boyle, 1996) e ao já clássico Tommy (Ken Russell). A plateia sente-se recompensada com códigos que domina. Sem nunca esquecer a luta para que o irlandês seja reconhecido como língua oficial na Irlanda. E não é fácil. A cultura britânica está enraizada, e contra os rebeldes está até o movimento político “oficial” em favor da língua irlandesa, que não concorda com a linguagem chula das letras, as referências explícitas ao sexo e ao LSD, o deboche, o tom anárquico-punk. Suas músicas são proibidas nas rádios.
Para quem vê de fora, esta seria uma questiúncula a envolver um grupinho de pessoas num canto do mundo. Consta que dos 80 mil habitantes nativos que falam irlandês, 6 mil vivem no norte da Irlanda. Mas foi preciso só 3 deles para chamar a atenção de todos. Esse pequeno filme tem conquistado fãs por onde passa. Ganhou o prêmio de público em Sundance e o Irish Film and Television Academy indicou Kneecap a representar a Irlanda no Oscar para filme estrangeiro, afinal, a língua predominante dele não é o inglês. A revista Variety faz campanha, afirmando que é um provável candidato.
Com ou sem Oscar, Kneecap dá sua contribuição para que o irlandês não vire uma língua extinta por causa da opressão de um colonizador. Para nós, brasileiros, tem o efeito adicional de nos fazer pensar sobre as línguas indígenas que não mais existem. Curioso que um filme dessas paragens leve a estas considerações e a conceitos de cinema periférico. Mas esta já seria outra chave. Cabe agora só chamar a atenção para quando ele entrar em cartaz, mesmo que só no streaming.
Nota final: o filme foi visto em uma sessão bem disputada no Hyde Park Picture House, um cinema inaugurado em 1914 em Leeds, Inglaterra. A programação é majoritariamente de filmes de arte (isto é, mercado restrito) e os frequentadores além de pipoca, consomem cerveja durante a projeção. Mas, não sei como, não fazem barulho.
0 Comentários